O Senhor Pode Entrar
(Nuno da Cunha Lobo Souto Maior-Rio de Janeiro/RJ
Bento Ribeiro, estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro, bem pacata, ensolarada e com dúzias de empregadores filiados à Previdência. Em geral, pequenas oficinas de reparos em automóveis, algumas padarias, uma alfaiataria e três lavanderias. Tudo modesto e beirando à inatividade naquela metade do século. Dentre as lavanderias ou tinturarias, uma situava-se em uma rua perpendicular à Carolina Machado, fazendo esquina com outra rua esquecida no tempo.
Examinando o CFE, naquele tempo uma fichinha de ¼ do tamanho ofício, em cartolina, foi constatado que havia mais de três anos na situação SE, sem empregados, o que não fazia sentido. Se fosse verdade, já era para estar falido, visto não haver movimento para fazer face às inevitáveis despesas de manutenção.
Em visita fiscal, foi chamada a atenção do titular, lusitano (naquele tempo ainda havia muita empresa dirigida por português), alto, magro, careca e atencioso:
– Doutor (o fiscal é sempre doutor, formado ou não), é verdade, empregado não os tenho e se os tivesse, o doutor pode acreditar em mim, estariam todos registrados. Mas se o doutor quiser, pode entrar.
Essa última frase, “pode entrar”, acompanhada por um largo gesto, também foi dita em tom mais alto do que o da conversação normal. “Pode entrar”, repetiu o Sr. Antônio mais algumas vezes.
O fiscal ponderou que não havia necessidade de tal invasão na parte residencial da tinturaria. Tinha certeza da existência de mais gente trabalhando e não ficaria bem para ele ser desmoralizado perante seus empregados, dentro de casa, perante D. Maria, sua esposa. Foi dado novo prazo para a apresentação, uma nova NAE (equivalente às atuais NAF, até na apresentação):
– Quando o doutor quiser, reforçou o Sr. Antônio. Empregados eu não os tenho e se os tiver estarão todos registrados. A Lei é para ser cumprida. Tantas quantas vezes vier, o doutor será bem vindo. Quando quiser, pode entrar.
Ante a insistência do Sr. Antônio para entrar em sua residência, o fiscal avisou ao tintureiro:
– Já que o Sr. insiste vou lhe mostrar que há mais gente trabalhando.
– Não seja por isso, pode entrar.
Entra o fiscal na parte residencial e encontra quatro tábuas de passar roupa com quatro ferros descansando, desligados, em posição. Com cuidado, encostou a mão no primeiro e estava quente; idem no segundo.
Quando se encaminhava para os outros dois, na sequência, o Sr. Antônio explicou antes de mais nada:
– Andávamos eu e a patroa passando roupa quando o doutor chegou… deu calor, e passamos a usar os outros dois ferros. Mas o doutor pode verificar, não há mais ninguém nessa casa.
De fato, prosseguindo na verificação, não havia mais pessoas que o casal português e o fiscal. Parecia plausível a explicação, mesmo com os quatro ferros quentes, em posição de trabalho. Ninguém mais.
– Sr. Antônio, o Sr. não me convenceu. Vou voltar aqui e vou provar que há mais gente trabalhando. Vou dar até os seus nomes e endereços.
– O doutor pode crer que não há mais ninguém além de mim e da patroa. Volte quando quiser.
Passados uns quinze dias, volta o fiscal à tinturaria e avisa:
– Sr. Antônio, é hoje que vou dar os nomes e os endereços de seus empregados. Isto sem sair daqui, sem necessidade de passar do balcão para dentro.
O Sr. Antônio, confiante e sorrindo disse:
– Não há necessidade, vou ficar aqui mesmo, respondeu ao fiscal.
Minutos depois entra na loja outro fiscal, conduzindo quatro senhoras, cada qual tendo na mão um cabide com as peças de roupa que estavam passando. Concluindo que a frase “pode entrar” era uma senha comandando a fuga das empregadas não registradas, colocara o outro colega num portão lateral, roteiro de fuga por onde as fujonas passavam e se escondiam em outra casa.
Resolvido o mistério dos três anos SE na lavanderia; resolvido o mistério dos quatro ferros de passar, quentes, junto às mesas apropriadas.
Fonte: Crônica publicada no livro “Essa nossa estrada – histórias fiscais II”, editada pela ANFIP em 1994.