O sapo e o circo – Victorino Alves Meireifes – Juiz de Fora (MG)

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Isso foi há muito tempo atrás… memória e divagações vão buscar no tempo os fatos ocorridos e aqui narrados.

Corria o ano de 1953. Minha sede fiscal era a cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro. Além da sede diversas outras localidades compunham a Zona Fiscal. Por determinação da Chefia deveria eu, à época, fazer a cobertura fiscal de uma pequena localidade denominada Comendador Gomes, assim recentemente batizada, pois que, até então, era conhecida por Areal.

Tal localidade nunca tinha sido visitada pela fiscalização, sendo, pois, uma zona virgem. Essa missão deixava-me um tanto contrafeito, por algumas razões. Primeiramente, pelo fato de não conhecer a localidade e nem mesmo alguém que lá morasse; ademais, por essa época, o triangulino era muito arredio a todas as repartições públicas, tanto na esfera federal quanto na estadual. E que a região almejava desvincular-se do Estado de Minas Gerais, criando um estado política e economicamente independente e que seria o Estado do Triângulo.

Poucos meses antes cheguei a presenciar uma revolta popular que se transformou em tremendo quebra-quebra na cidade de Uberaba, no mesmo ano de 1953. Essa revolta visava depredar todas as repartições públicas, não escapando nem mesmo a Agência do ex-IAPI, embora pagadora de vários benefícios na cidade. A Agência foi inteiramente depredada e rasgados todos os papéis e fichários, inclusive os de benefícios, bem como arrombado o seu cofre a poder de marreta. Esse era o clima que imperava na região.

Claro está, pelas circunstâncias narradas que eu não esperava uma boa receptividade à pessoa do agente fiscal e imaginava uma forma de melhor trabalhar essas dificuldades para êxito de minha missão.

Certa manhã, bem cedo, instalo-me num desconfortável banco da jardineira que demandava a localidade de Comendador Gomes (jardineira é um veículo de poucos lugares, baixo e saltitante, também conhecido por “perua”) e, após alguns minutos estava o veículo vencendo a estrada. Estrada essa que era de terra batida e que, à passagem da jardineira projetava no ar rolos imensos de poeira nublando toda a paisagem.

Finalmente chegado ao lugar fui procurar onde me pudesse instalar. Havia apenas uma pensão muito modesta e sem o mínimo conforto e que me trouxe algumas surpresas. A primeira delas foi quando indaguei pelo sanitário e me foi indicado um pequeno cercado de madeira ao fundo do quintal, independente do corpo de prédio da pensão. Dentro da citada “casinha” havia apenas uma fossa e, para maior surpresa, pedaços de arame pregados nas tábuas da parede e em que se enrolavam diversos sabugos de milho. Certo que eu já tinha ouvido falar de tal substituto para o papel higiênico, porém acreditando tratar-se de folclore ou gozação popular. Claro que tive o trabalho de procurar um rôlo de papel higiênico no comércio local. Mas isso não foi tudo. Cansado da viagem e coberto de poeira da estrada procurei tomar um banho e tive nova surpresa. O banheiro era um pequeno cômodo cimentado tendo por chuveiro um grande regador em que a haste com os crivos fôra trocada para a parte de baixo e amarrado na travessa de madeira da parte superior com forte corda num mourão fincado no chão para dar sustentação. Como não adiantaria lamentações, propus-me a tomar um banho assim mesmo, embora com muito receio de se soltar o regador cheio d’água, com todo o seu peso, sobre minha cabeça.

Durante o frugal almoço servido fiquei conhecendo um viajante paulista, muito gozador e que, a toda hora, fazia galhofas a respeito das instalações da pensão, especialmente banheiro e “casinha”:

— Cuidado com o regador para não molhar muito o pepino! Ao que eu respondia: — Tome cuidado com o sabugo!

Pouco tempo após o almoço parti para aura missão de implantar a previdência social naquele rincão. A princípio, para não assustar os futuros contribuintes, utilizei de um artifício que deu bom resultado: visitei todos os estabelecimentos alegando tratar-se de uma aferição estatística e coletando dados sobre as próprias empresas e seus empregados. É sabido que, em pequenas localidades, visitado o primeiro estabelecimento logo a notícia corre e dificilmente o fiscal encontra outros em funcionamento.

Quando algum estabelecimento é encontrado aberto nenhum empregado é achado no serviço.

Com tal estratagema consegui apurar todos os dados atinentes à cobertura fiscal, nesse primeiro dia.

Após o jantar saí com o “paulista” para um bordejo na cidade. Paramos em um salão que tinha jogo de sinuca e passamos a nos distrair com o mesmo, para passar o tempo. De repente levamos um grande susto: um enorme sapo tinha entrado no salão e estava nos olhando fixamente. Era um sapo de aproximadamente meio metro de altura e igual medida de comprimento. Disse o paulista tratar-se da espécie denominada jia, mas que eu nunca tinha visto.

Lembrei-me, então, vendo o sapo nos encarando, por que razão os jogadores de sinuca e, especialmente de baralho denominam de “sapos” as pessoas que ficam encarando o jogo e até dando palpites.

Com aquele tipo de sapo, porém, não adiantava a gente se aborrecer. Ele não arredava pé, ou melhor, pata do lugar. Mas, de qualquer forma, todos evitavam passar perto dele.

Logo nos entediamos de jogo e resolvemos andar mais um pouco. Na praça principal da cidade ficamos sabendo que havia um circo no lugarejo, com função naquela noite. Lá fomos nós, mas, chegados ao local, quase desistimos do intento. O circo era muito modesto e fechado apenas lateralmente, com lona já muito gasta. A parte de cima era inteiramente descoberta. Logo avaliamos, pela aparência, que dali não sairia, nem mesmo, um razoável espetáculo. No entanto, como já estivéssemos no local e não tivéssemos nada mais a fazer, àquela hora, adentramos o circo. Logo vieram números medíocres de mágicos, palhaços e outros que tais, muito embora a boa vontade dos artistas para que o espetáculo, se é que assim pudesse ser denominado, viesse a agradar ao público.

Por último, para coroar a exibição circense, foi levada ao palco uma peça dramática, cujo ápice ou corolário, acontecia quando o marido traído matava a tiros a mulher infiel. Verificava-se que o ator principal, por um motivo qualquer, não estava atuando nessa noite. É que todas as suas falas eram “sopradas” pela atriz principal que se desdobrava para que o público não percebesse o fato. No auge da cena da morte da esposa o marido traído, arma em punho, atira e prosta ao chão a mulher infiel. Em seguida coloca um pé sobre o corpo da vítima e exclama, tonitroante, após sua fala ditada pela falecida: Maldita! Dorme o sono da maternidade! É que nosso indigitado ator, não tendo entendido bem a sua fala, disse maternidade quando deveria dizer eternidade. Parte do público, percebendo o engano, prorrompeu em gargalhada; os que não captaram a falha do ator ficaram, por certo, escandalizados com a insensibilidade dos galhofeiros diante de cena tão dramática.

Após uma noite mal dormida em virtude de uma ferrenha briga com travesseiro e colchão, duros e disformes, levantei-me com a intenção de terminar todos os levantamentos de débito que, na realidade, não eram muitos e apressar minha volta à minha sede fiscal. A volta às empresas com a finalidade de esclarecer suas obrigações para com a Previdência Social, bem como colher assinaturas nos levantamentos (notificações) demandou ao fiscal um razoável poder de convencimento; ainda assim alguns se recusaram a apor suas assinaturas, razão pela qual foram as notificações remetidas pelos Correios, como de praxe.

Desbravada a localidade e cumpridas todas as devidas tarefas preparei-me para o retorno à minha sede, Uberaba. Esperando a jardineira um morador da localidade perguntou-me se essa era a primeira vez que vinha à cidade, ao que respondi: — Sim, é a primeira vez — Na realidade eu gostaria de responder, se a urbanidade não me proibisse: — Não amigo, é a última vez.

Já na jardineira, vencendo a distância, ia pensando nos sucessos vividos na localidade: o sapo do salão, o ator circense, a modesta pensão, enquanto o ar ia ficando nublado de poeira vermelha…