Hercules Maia Kotsifas – Maringá (PR)
Aquele dia saí da Superintendência em São Paulo disposto a matar e morrer pela Previdência. Tínhamos participado de uma reunião com o Coordenador de Fiscalização visando uma ação conjunta contra as empresas de Vigilância e Limpeza, conhecidas pelo bárbaro costume de sonegar suas contribuições previdenciárias. Fui encarregado de fiscalizar a Continental, no bairro do Bom Retiro. Eram mais ou menos três horas da tarde e eu fervia de indignação. Ficara sabendo que a Continental mantinha as portas fechadas e não havia meios de franquear a entrada à fiscalização. Eu estava decidido a arrombar a porta, chamar a Polícia Federal, aprontar o maior barulho, desde que conseguisse levar a cabo o meu serviço. De preferência pondo na cadeia os pilantras proprietários da empresa.
Como o meu salário andava em baixo e não havia dinheiro para a gasolina, fui à empresa de ônibus, o que serviu pra aumentar um pouco mais o meu mau humor. Cheguei e realmente deparei com a porta fechada. Fui logo metendo a mão na campainha, uma, duas, três, quatro vezes. Em seguida, esmurrei a porta. Daí a pouco ouvi passos e preparei-me pra batalha. Estavam pensando que eu era como os outros que desistiam ao menor empecilho? Só sairia dali com o débito apurado.
Ouvi uma vozinha perguntando:
— Quem é?
Respondi aos berros:
— Fiscal do IAPAS.
Silêncio. Ah, com certeza estariam fugindo. Bati novamente na porta. Um instante e a porta foi aberta. Levei um susto. Era um garotinho de mais ou menos nove anos.
— Cadê o dono da firma? — Perguntei com altivez.
O menino me encarou com os olhinhos mais tristes do mundo e respondeu com uma voz cansada:
— Lá dentro.
Ergui os olhos. Era um pequeno sobrado, geminado, estilo colonial, com as janelas de madeira e a porta de vidro, tudo em péssimo estado.
Deixei o menino e fui entrando. Um homem veio me receber. Baixinho, magrinho, ou melhor, raquítico, apresentou-se como o proprietário. Achei que havia alguma mutreta. Certamente era um “laranja”. Por isso fui logo ao que interessava.
— Senhor Januário, eu sou fiscal do IAPAS e estou aqui para fazer uma fiscalização na empresa.
Achei que ele iria colocar algum obstáculo, mas simplesmente me convidou a entrar. O escritório ficava numa sala encardida, com as cortinas rasgadas, uma mesa desconjuntada e uma cadeira com furos no estofado.
— Onde está o contador? — Perguntei, disfarçando a decepção. Januário sorriu desalentado.
— Tem contador não.
Não estava gostando nada daquilo. Sentei-me, peguei a minha máquina de calcular, caneta e papel e comecei. Abri o livro de empregados e vi que havia apenas cinco registros.
— Senhor Januário, como é que o senhor me explica isso? Só cinco empregados registrados?
Ele sorriu novamente.
— Pois se só tem isso mesmo. A coisa tá feia, moço. Não tou fazendo nem pra comer.
Então eu vim preparado pra pôr na cadeia um grande sonegador e encontro um senhor raquítico com cinco empregados? Havia coisa. Havia coisa!
O menino me encarava com os olhinhos miúdos. Aquilo me incomodou.
— E esse menino? O que ele está fazendo aqui?
— É o meu filho. A gente mora é aqui mesmo.
Ele apontou pela janela. Virei-me e vi no fundo uma pequena edícula, um varal com roupas pendurados e uma mulher na beira de um tanque.
— Já cheguei a ter vinte empregados. Hoje, “malemá” consigo pagar os salários desses cinco. Tou pensando em fechar tudo e voltar pro Ceará. Eu cheirava no ar alguma coisa errada. Certamente aquele homenzinho estava querendo me enganar. Talvez fosse tudo uma armação. Peguei as folhas de pagamento e comecei a levantar o débito. Ele perguntou se eu queria um café. Respondi que sim e em pouco ele me trouxe num copo um café ralo. Sorri. Pela primeira vez numa empresa serviam-me café num copo de massa de tomate. Bebi um gole, estava frio, fiz uma careta, abandonei o café e mergulhei no serviço. Uma ou duas horas mais tarde ouvi uma gritaria na entrada da casa. Percebi que discutiam em altos brados. Levantei-me assustado, deixei o escritório e saí pra ver o que acontecia. Um rapaz alto e forte segurava Januário pela gola da camisa e ameaçava esmurrá-lo, enquanto o menino, agarrado em suas calças, implorava-lhe que não batesse no pai. Corri até eles e perguntei o que estava acontecendo. O rapaz soltou Januário e voltou-se para mim.
— Consertei a televisão dele e agora ele não quer me pagar.
Januário tentava explicar:
— Mas eu falei que só vou ter dinheiro no começo do mês. Ele não quer esperar.
O rapaz agarrou-o novamente pelo colarinho e ergueu a mão para esbofeteá-lo. Eu intervi.
— Calma, meu amigo, vamos conversar com civilidade.
Ele virou-se pra mim:
— E você não se meta no que não é da sua conta! Já faz três meses que eu venho tentando receber esse dinheiro. Hoje só saio daqui com a grana na mão ou quebro a cara dele.
O menino chorava agarrado ao pai. A mulher, com um bebê ao colo, assistia, impassível, a cena. Januário tinha os olhos úmidos.
— Quanto ele te deve? — a pergunta saiu de minha boca sem eu menos esperar.
— Cinco mil.
Era muito dinheiro. Eu só tinha no bolso o dinheiro contado pro ônibus.
A mulher me olhou com os olhos suplicantes. O menino parou de chorar e esperava. Januário parecia uma criança, encolhido, medroso no canto. Lembrei-me do relógio que havia comprado há menos de um mês. Sonho de muitos anos. Tirei-o lentamente do braço e mostrei-o ao rapaz.
— Aceita esse relógio pela dívida?
Ele pegou-o, examinou-o com cuidado e enfiou-o no bolso. Virou as costas e saiu sem dizer uma palavra. Januário estava de cabeça baixa. O menino me olhava com um brilho nos olhos molhados. Voltei ao escritório, arrumei minhas coisas, atirei-as desordenado dentro da pasta e fui saindo. Na porta, disse em tom quase inaudível:
— Outro dia eu volto.
Devolvi, naquele dia mesmo, o CFE para o chefe de grupo. Nada neste mundo me faria fiscalizar aquela empresa.
Um ano depois passei por acaso defronte a casa e havia uma imobiliária no lugar. Certamente Januário, cansado da dura vida de São Paulo, retornara ao seu Ceará.
Vez ou outra, sei que é uma besteira, mas me bate uma saudade dolorosa daquele menino de olhos tristes.