Nuno da Cunha Lobo Souto Maior (Rio de Janeiro/RJ)
O Veiga era o sr. Chefe do Serviço de Fiscalização do IAPI no Estado de Goiás, lá pelos idos de 1952. Careca, muito branco, refinado no trato e muito eficiente no trabalho, comandava os dois fiscais do Estado. Dividiam Goiânia ao meio, ficando um com o norte do Estado, até o Pará, enquanto o outro fiscalizava o Sul, confinando com Minas Gerais.
Recém-nomeado, competia-me fiscalizar o Norte, enquanto aguardava a minha chamada de transferência para São Paulo, primeira opção no concurso. Goiás fora a porta de entrada na fiscalização, saído de escriturário do Rio de Janeiro, ainda Distrito Federal.
Goiânia me encantou pela urbanidade de seus moradores. Calmos, descansados e muito aparentados com o modo mineiro de viver. O pôr-do-sol (nunca vi o nascer-do-sol, por preguiça), no período da seca, de maio a setembro, marcou profundamente minha imaginação. Nunca pude imaginar um céu vermelho e ele lá estava exuberante. Um horizonte distante, plano e sem morros era uma novidade para quem cresceu vendo a morraria do Rio de Janeiro. A simetria das ruas, amplas, retas ou circulares, se entrelaçavam misteriosamente. Só não entendi a maneira de orientação naquele emaranhado. Todas numeradas, mas não havendo ordem na sequência. Se havia racionalização na enumeração das ruas, escapou-me por completo. A linda avenida Goiás, reta, larga e arborizada, sem fim, era uma novidade total para quem vivia espremido e congestionado. O lago das Rosas (que lamento saber não existir mais) era uma atração à parte. O Bar Porta Aberta, funcionando 24 horas por dia. Campinas, cidade que perdeu sua identidade, tomando-se um bairro da nova Capital do Estado, tinha atrações peculiares, em casas com luz vermelha na varanda, em permeio de casas sem luz vermelha na varanda. Tudo em plena harmonia naquela metade do século. Bendita década de 50.
Minha ida para Goiás representou uma carreira nova e Goiânia foi o portão de entrada, com todas as delícias acima enumeradas. É de acrescentar, hoje entendo melhor, o rompimento das cadeias hierárquicas representada pela família. Até então havia (e hoje tenho saudades) uma mãe severa e cautelosa querendo saber onde o filhinho (um latagão) passara a noite, onde e o que comera e, principalmente, com quem estivera. Goiânia, afastada de verdade, tinha todo o conforto de cidade importante que era. Luz elétrica, telefone da melhor qualidade com o único inconveniente que somente fazia ligações dentro da cidade. Para comunicações fora de Goiânia, o telégrafo; para locomover-se, os aviões e os ônibus. Umas curiosidades: no Jóquei Clube não havia corridas de cavalos e no Tênis Club não se jogava tênis. Na verdade, eram dois clubes sociais, muito elegantes, de alto gabarito, onde a elite se reunia.
E poeira, muita poeira vermelha que me dá saudades até hoje. Voltando para o Rio, depois de muitos banhos, ainda marcava de vermelho a toalha de banho. Êta poeira gostosa. Era com ela que o sol pintava o crepúsculo de vermelho. Grande artista.
Voltemos ao Veiga, chefe correto, com muitos anos de IAPI (na época tínhamos o apelido de Inapiários), comedido e eficiente. Certo dia convocou-me para uma diligência urgente e especial. É que havia um leprosário próximo à cidade e, dentro deste hospital, em pleno funcionamento, havia uma fábrica de benefício funcionando a todo vapor. Bastava uma única contribuição para a previdência e o leproso passava a receber uma prestação mensal, vitalícia. Baseados nesta peculiaridade legal, logo que o hanseniano era internado seguia-se seu vínculo empregatício e, um mês depois, mais um em caminho para a aposentadoria certa e definitiva. Era uma fraude que precisava ser corrigida, disse-me o Veiga com toda a seriedade.
Hoje a hanseníase deixou de ser “lepra”, deixou de ser “morféia”, sendo considerada uma simples doença de pele, sem o terror medieval que acompanhava seus outros terrores. Banalizou-se a ponto de perder nas faculdades de medicina uma cadeira exclusiva para seu estudo. Está no nível dos eczemas, das psoríases (talvez um pouco mais temida) mas uma mera doença de pele. Mas nos anos 50 ainda era temida doença que atormentava aos recolhidos em leprosários, em lazaretos, onde eram virtualmente depositados e abandonados pela família, como se fora um lixo atirado ao monturo. Justamente era neste monturo que o Veiga, sisudo e compenetrado, insistia em enviar-me para acabar com a “fábrica de benefícios que lesava o IAPI”. Não é necessário ser descrito o medo, ou melhor, o pavor em envolver-me em tal diligência. Verdade ou mentira, vim a saber que os leprosos, temerosos em perder o auxílio indevido que recebiam, se preparavam para receber o fiscal logo que ele chegasse ao hospital com várias mordidas. Dentadas mesmo, ameaçando com isto transmitir ao agente da Previdência o mesmo mal que lhes afligia. Uma espécie de vingança.
A primeira medida foi adiar a ida ao leprosário, já que não havia meio de descumprir a ordem recebida. Uma fiscalização em curso adiou a missão. A segunda medida foi protelar para mais além, negaceando com todos os argumentos possíveis e impossíveis. Vez por outra o Veiga, sempre sério, cobrava a tarefa saneadora até que foi mais impositivo. “Temos que pôr fim a esta fraude”, determinou. Os argumentos, novos e antigos, foram aplicados, inclusive convidando-o a acompanhar-me ao leprosário. Até mesmo o Leonísio, o outro fiscal, foi por mim arrolado na diligência. Fazia falta. Acabei não indo, transferido que fui para São Paulo.
Até a presente data não sei até onde era realidade a tal diligência. O Veiga não era dado a brincadeiras e fica difícil imaginá-lo dando um trote no carioca, ameaçando-o com uma multidão de leprosos, de dentes arreganhados, prontos a fazer mais um leproso. Por outro lado, estas mesmas pessoas fechadas têm sempre seu lado gozador, que via de regra se manifesta sob uma capa de rígido comportamento. Ainda não sei qual a do Veiga; não sei por onde ele anda mas, onde quer que ele esteja, desejo levar-lhe uma profunda admiração, um grande respeito e uma sincera amizade. Agradeço, principalmente, aquilo que me ensinou: os primeiros passos do fiscal. Grande sujeito.