De como foi a viagem de volta… e das coisas que aconteceram
Niraldo Ambra – Niterói, RJ
Missão terminada, era hora de partir. Já sentado na pequena caminhonete, a “jardineira” que nos levaria na longa jornada até Campo Grande, a solícita funcionária da agência nos ofereceu um bolo, feito por ela mesma, para amenizar a aspereza da viagem de volta até São Paulo. Agradecemos, dando adeus ao gerente Martiniano, e, manhãzinha, começamos a enfrentar a grande volta, a “jardineira” sacolejando ante os desníveis da estrada boiadeira.
Para trás fomos deixando o Coxipó do Ouro, com suas águas cristalinas; a suave Cuiabá, das pequenas ruas estreitas de casas baixas, com portas e janelas sempre acolhedoramente abertas, ruas onde não era preciso faiscar; bastava remexer a terra e de lá brotavam os grãos dourados, até pepitas, ouro da terra. Cuiabá do saboroso pacu, do licor de pequi, então subordinada a São Paulo, sede da região.
Tínhamos bem cumprido a tarefa de designar, onde fosse possível, os “correspondentes” do IAPC no interior de Mato Grosso. Era uma gente boa, um pouco tímida, que às vezes nos obrigava a longas dissertações sobre a Previdência, em que consistia a arrecadação, seu controle, quais modelos deveriam preencher. Eram todos ouvidos, mas somente alguns se atreviam a formular de quando em vez perguntas esquisitas, uma das quais permanece até hoje viva na memória, pelo espanto com que a ouvi: “O que era empregador?”…
Mas vale a pena contar, a propósito, o que aconteceu. Sabedor da minha missão de procurar, no interior do Estado, a quem designar correspondente, o prefeito Novis, de Cuiabá, convidou-me, com modéstia e gentileza, a acompanhá-lo na viagem que ia fazer a Poconé, no carro da Prefeitura. Não ia só. Acompanhava-o sua sobrinha, jovem de bonitas feições e límpido olhar. Assim, amenizaria a monotonia da viagem, levando mais um companheiro. Claro que aceitei.
Seguimos viagem de manhãzinha, o sol nascendo, pintando o céu de cor-de-rosa, que ia esmaecendo até misturar-se ao azul-claro dos céus de Cuiabá. Trabalho feito e concluído, voltamos no dia seguinte, à tardinha, confiantes no motorista, conhecedor de todos os caminhos e que nos prometera a chegada a Cuiabá antes do anoitecer.
Vínhamos rodando, à meia velocidade permitida pela estrada boiadeira, tão despreocupados que nem sequer sentimos o passar das horas: quatro, cinco e… será que o motorista estava certo? Aqueles eram os caminhos? Eu, calado, esperando não sei o quê; o prefeito já dando mostra de que começava a impacientar-se, olhos fixos no motorista que torcia e retorcia o volante do carro, até que a mata foi se aproximando, aproximando e, já quase anoitecendo, fechou-se na frente do carro, que freou com toda a força. E agora?
Custou-nos desvencilhar daquela importuna ramagem, empurrar o carro até um caminho de terra; o prefeito já esbravejando com refreados xingamentos, mormente pela presença da sobrinha, já inquieta diante da quietude da mata e do escuro da noite, que já começava.
O motorista, coitado, se desculpava, humilde. Como podia ter errado o caminho de volta e se perdera na mata, sempre igual, sempre igual? O prefeito não queria voltar.
– “Seu” ignorante, comedor de terra; não vê que estou com a minha sobrinha e você vai nos obrigar a ter que dormir no meio desta desolação, dentro do carro?…
Estávamos perdidos, sem saber que fazer; esperar que alguém aparecesse naquela imensidão era esperar demais. Lembrei-me então, não sei porque, das noites de Cuiabá. Noites quietas, o céu cintilando de estrelas, o Cruzeiro do Sul na faixa do horizonte.
O prefeito continuava a perguntar-se em qual má hora o motorista que o servia tão bem todos os dias lhe garantira que era capaz de virar do avesso todas as estradas e caminhos, desde Cáceres até as margens do Araguaia, se ele era obrigado agora a dormir ali, naquela imensidão, em companhia da sobrinha, acostumada ao conforto da cidade. E o moço que convidara para acompanhá-lo?
Fiquei ali quieto, ante a raiva do prefeito, pensando no que estariam fazendo as pessoas de Cuiabá, nas noites claras e mornas, onde se passeava na praça da Matriz, ouvindo os sinos tocarem, o coro cadenciado dos grilos, mirando o céu cheio de estrelas que cintilavam; o Cruzeiro do Sul, na faixa do horizonte, apontando para a Matriz.
Apontando para a Matriz… Veio-me, não sei como, uma ideia absurda: eu não era nem astrônomo nem navegador dos oceanos, mas não podia estar ali a solução?…
Criei coragem, chamei o prefeito; disse-lhe que a permanecer ali, parados, melhor seria tentar alguma coisa; era uma tentativa como outra qualquer, mas, se Deus quisesse, o Cruzeiro do Sul apontando para a Matriz…
O prefeito encarou-me, descrente; mas depois, encolhendo os ombros, disse que podia ser; a ideia valia mais do que dormir ali. Chamou o motorista, nomeou-me seu guia pelas estrelas e lá fomos nós, a sobrinha mais calma, os olhos límpidos ainda cheios de espanto.
Foi assim até que vimos um pálido clarão acentuado a linha do horizonte, que foi crescendo, crescendo… Cuiabá!
O prefeito me cumprimentou agradecido, ratificando minha nomeação de primeiro é único astrônomo navegador dos oceanos que apareceu em terras de Mato Grosso. E como me comoveu o medroso abraço de agradecimento da sobrinha de bonitas feições e límpido olhar.
A “jardineira” ia comendo quilômetro mais quilometro da estrada do sem-fim, balançando pelas juntas, deixando atrás de si um rastro de poeira. Até que chegasse, quando chegasse, à noitinha, no lugar da parada, da refeição e da dormida, uma grande cabana, com as redes já estendidas, os punhos suspensos pelos armadores pregados nas grossas estacas que sustentavam, no alto, a cobertura de palha.
Manhãzinha, já refeitos, vimos que dormíramos ao lado de estranhos vizinhos, os índios bororos, baixos, troncudos, rosto pintado de urucum, as mulheres vestidas como homem, com um amarrotado chapéu de largas abas a esconder-lhes os cabelos negros, “por causa do homem branco”. Já conheciam os usos e costumes dos civilizados e pediam, sérios, cinco mil réis para deixar-se fotografar, “cada um”.
Depois, as exibições, todas pagas: munidos de um grande arco e de longas flechas, os bororos mostravam suas habilidades, entre as quais uma: deitados de costas, com as pernas esticadas para cima, segurando o arco, ajeitando a grande flecha, a qual, zunindo, subia riscando os céus.
– Quer experimentar?, falou um deles, oferecendo-me o enorme arco e a comprida flecha, que coloquei sobre os dedos, distendi o arco com toda a força de que era capaz, e disparei.
Bem, não foi um grande tiro, não? A flecha tinha seguido mole, mole e foi cair uns cinco metros depois. Pois é.
A viagem foi prosseguindo, alternando dia e noite, a paisagem desfilando monotonamente. Às vezes, saboreávamos um chimarrão frio; de outras, víamos veados e emas correndo, ou olhando, espantados, o estranho exército que tínhamos diante dos olhos, um interminável desfile de endurecidas e pontuadas torres de terra, o reino absoluto das saúvas.
Passamos por Rondonópolis, o Vermelho, o São Lourenço, até que, vencido o rio Correntes, começamos a percorrer um imenso areal, que parecia não ter fim, pois era ali onde encontraríamos a cidadezinha de Coxim, que nos parecia ser a última antes de Campo Grande.
Acontece que a “jardineira” foi se arrastando, arrastando, rangendo, no meio daquela vastidão de areia, ora meio inclinada, ora dançando, desengonçada até que… Bem, até que a inclinação foi forte demais e a “jardineira” ficou encostada no barranco de areia, virada de lado, parada como se um grande sono lhe travasse a caminhada, a dois quilômetros de Coxim, o eixo traseiro quebrado. Era o fim.
Socorro? Teria que vir de Campo Grande. Demoraria dois, talvez três dias; outra enrascada, desta vez pior, pois tínhamos a chegada marcada em Campo Grande. Como ia ser?
Antes de mais nada, andando devagar, nós e os outros passageiros conseguimos chegar até Coxim, onde nos acolheram quais náufragos da areia e, após um banho de cuia, nada mais para fazer.
Teríamos que passar ali os dias até a chegada do socorro e, depois, retomar a viagem até Campo Grande. Mas eu não podia esperar.
– Moço – disse o dono do hotel –, o jeito é ir andando por este “areião” até alcançar a estrada que vai para o sul e lá, se Deus ajudar, ficar esperando até que surja alguma condução e lhe dê carona.
Não tinha jeito; saí andando, solitário, com os pés pisando fundo na areia quente e macia. Até que alcancei a estrada onde fiquei sentado, bagagem servindo de banco, esperando, esperando…
Não sei quanto tempo ali fiquei, olhando a curva da estrada; só sei que apareceu, roncando, um caminhão com a sua carga, que felizmente parou, me acolheu na boleia e mediante o pagamento de cem mil réis me levaria até Campo Grande, onde, se Deus fosse servido, haveríamos de chegar lá pelas tantas da noite.
De novo fomos seguindo pela estrada, aos solavancos, respirando a poeira vermelha que nos ia cobrindo da cabeça aos pés, até que conseguimos chegar, já noite, cobertos de suor e de poeira.
Nunca pude esquecer a expressão de horror do recepcionista do hotel, que arregalou os olhos espantado quando viu um enorme caminhão de carga parar à sua porta e dele descer, carregando mala, um homem com a cara suja que parecia ter saído…
– Ei – gritou o moço, assombrado ao ver que o homem sujo de terra e pó entrava no seu salão –, aqui não tem lugar não; o hotel está cheio; pode ir lá para os lados do hotel da estação, que certamente é o seu lugar…
Foi difícil entrar e convencer o recepcionista que era eu aquele para quem havia um pedido de reserva e que meu aspecto lamentável se devia a um eixo quebrado perto de Coxim. Finalmente convencido, desculpando-se, o recepcionista informou que funcionários da agência de Campo Grande já tinham estado no hotel à minha procura.
Terminava deste modo a primeira etapa da grande viagem, que agora iria prosseguir de trem, dois dias e duas noites, quando finalmente, palavra de gente boa, haveria eu de descansar depois da longa, exaustiva e incrível canseira.
O trem ia se arrastando ao barulho cadenciado das juntas ou das sapatas dos trilhos, dois dias e duas noites; era um bom descanso, na recordação dos dias passados, dos riscos da viagem, da moça de feições bonitas e olhos límpidos, do prefeito de Cuiabá, do motorista desastrado que conhecia todos os caminhos, dos bororos, a “jardineira” quebrada, o moço do hotel, nossa… era um estirão que me derrubou de canseira. Fiquei imaginando como teria sido a vida tão desconfortável, visto que eu já a havia experimentado, dos primeiros fiscais da Previdência, em imagens confusas, a passear pela mente.
Aquidauana, Três Lagoas, a ponte sobre o rio Paraná, deixando para trás as terras do Mato Grosso, até quando?
Andradina, Araçatuba…
Ah!… Quem jamais tentaria narrar a saga dos agentes da fiscalização? De como seriam os fiscais daqueles tempos em que a Previdência nascia, ia crescendo, apesar da hostilidade das entidades de classe?
Dos pioneiros anônimos, dos heróis nunca lembrados, dos bravos e modestos desbravadores deste País imenso, do norte ao sul, de oeste a leste, desde as coxilhas e campinas do Rio Grande até as terras secas do Nordeste, às infindáveis florestas e aos grandes rios da Amazônia, quando podiam iam de trem, mas quase sempre nas empoeiradas “jardineiras”, nos cavalos marchadores, nas canoas ou nas montarias, vencendo os meandros de rios desconhecidos, ao sol e à chuva, qualquer condução valia, desde que alcançassem, cansados mas felizes, a almejada vila, o arraial, a cidadezinha onde nem sequer existia uma simples, modesta pousada, não fosse às vezes um delegado oferecendo as celas da cadeia, sempre vazias, onde afinal se aboletava, já tinham onde dormir.
Fiscais que aprenderam a vencer dificuldades, que encontravam o comércio fechado em sinal de protesto ou, ainda, o comércio aberto, mas sem empregados: avisados por alguém da cidade vizinha, patrões mandavam para casa seus empregados; só restavam eles, isentos de inscrição por serem segurados facultativos.
Aprendendo a conviver com os poderosos do dia quando, logo na entrada da cidade, um camarada de cara fechada, com garrucha e facão, o interpelava:
–Moço, aonde vai?
– Vou pedir a bênção do Coronel, conseguir me favoreça com sua licença para entrar e ficar na cidade.
O camarada examinava-o, atento; revistava-o, indagando se portava qualquer arma, até levá-lo, enfim, à presença do dono da cidade e de tudo o que nela se continha.
– Que deseja, moço?
– Em primeiro, sua bênção, meu Coronel…
– Deus lhe abençoe. Que mais o moço quer?
– Em segundo, sua licença para ficar na cidade e começar minha obrigação.
Fazia um gesto largo, estava concedida a licença; o fiscal levado à presença do prefeito, onde tudo era facilitado junto ao comércio – o Coronel mandou… Mas, ao contrário, se alguém não cumprisse a regra, era simplesmente largado no meio da estrada.
A viagem continuava, com o trem correndo e cantando nos trilhos, as cidades passando, uma a uma – Lins, Bauru, Botucatu. Mais algumas horas estava chegando ao fim a longa viagem de volta. Um longo apito de trem, um suspiro de alívio e, afinal, São Paulo velho de guerra, mas sempre São Paulo.
Todo o que está aí escrito, aconteceu. É a verdade.
Corria, tranquilo, o ano de 1938.