Gilson Nascimento (Rio de Janeiro – RJ)
Três horas da tarde. Desço do ônibus em Tabuleiro de Areia, cidade do sertão do Ceará.
Demoro o olhar na praça que tenho à minha frente. O sol, olho vivo, derrama-se em profusão por toda ela. Um jumento relincha, quebrando o silêncio da cidade modorrenta e quieta. Depois, cabeça abaixada, tenta consumir o resto de grama que luta para sobreviver num dos maltratados canteiros. Amarrado ao tronco de uma frondosa mongubeira, o cavalo que trouxera o fazendeiro às compras, liberta-se do suor e do cansaço da longa viagem, fruindo aquele pequeno oásis de sombra.
Seu Aristides, à porta de casa, suspensórios gastos, óculos refugando o nariz, lenço encardido enxugando o suor do rosto, olhos espetados no céu, parece ansioso pela “fresca” do entardecer.
Sua casa não era hotel — esclareceu-me — mas costumava hospedar algumas pessoas. O dentista e o promotor já moravam ali. O quarto que sobrara, o da frente, pegado à sala, estava ocupado há algum tempo por um fiscal do Estado. Adoecera, o médico de uma cidade vizinha tinha feito o tratamento. Melhorara, mas agora tinha tido uma piora. Só tinha aquele lugar vago. Se eu quisesse, armaria uma rede pra mim no mesmo quarto.
— Aristides! Aristides! — era a mulher do tabelião — chame o seu fical pra tomar um banho! Ele deve estar morrendo de calor!
Entrei, e ela me indicou o banheiro — uma casinha de palha de carnaúba no fundo do quintal:
— É ali, doutor, que a gente toma banho; tem um poço e um balde com uma corda pra mode a gente tirar a água.
— E essa panela aqui cheia d’água? — indaguei.
— Isso é água do pote, moço: o senhor leva pra mode limpar o corpo adispois do banho.
E, sentindo pergunta no meu silêncio, esclarece:
— Estamos em fins d’água, doutor; o inverno foi fraco e a água do poço está meio barrenta.
As sombras se adensam. E a noite, trazendo a “fresca” que seu Aristides aguardava, é portadora também da quietude e do silêncio das pequenas cidades do sertão. Sentamo-nos, eu e ele, na calçada, embebendo-nos de paz e tranquilidade. Da esquina próxima chega até nós o tlac-tlac das pedras de um gamão. O cão solitário uiva a distância, e seu uivo se perde na tarde.
O tabelião convida-me a entrar:
— Venha cá, doutor; quero lhe mostrar o seu canto e lhe apresentar o seu colega. O fiscal — tivera febre aquela manhã — a muito custo abriu os olhos e, num fio de voz, balbuciou-me as boas-vindas. E seu Aristides, esclarecedor:
— E esse aqui o seu canto, doutor — e mostrou-me os armadores. —Mais tarde, minha mulher, a Maroquinha, arma sua rede. Está limpinha que faz gosto.
Minhas noites naquela cidade foram as piores da minha vida fiscal. Dividindo o quarto com uma pessoa estranha e, além disso, enferma, eu não tinha tranquilidade. Frequentemente, noite avançada, o doente perdia o sono. E, inquieto, tossia, procurava ar, soltava gemidos. E isso me roubava o sono e sossego. Mas … que havia eu de fazer. Precisava cumprir o roteiro fiscal, dar continuidade à fiscalização, levantando os débitos do período descoberto. Os empregadores, por outro lado, não eram compreensíveis, não queriam se curvar à lei, discutiam, deixando-me, por vezes, meio aborrecido. Mas eu, com a possível habilidade, ia contornando a siatuação.
Havia algo que me intrigava desde minha chegada: o segredo do tabelião quanto à doença de meu colega. Sempre que eu abordava o assunto, ele, habilmente, dava à conversa um outro rumo, fugindo. E o doente, apesar de tomar os medicamentos que o médico lhe prescrevera, não apresentava melhoras.
Certa vez, noite alta, acordei assustado. O enfermo despertou e, inquieto, revolvendo-se na rede, começou a delirar:
— Não faça isso, meu amigo! Solte esse revólver! Não me mate, pelo amor de Deus! Estou no cumprimento do dever! Sou casado, tenho mulher e filhos!
A seguir soltou um tremendo grito. O tabelião e sua mulher acorreram, às pressas, em socorro de seu hóspede. Acenderam a luz, procuraram acalmá-lo, deram-lhe um chá de cidreira e ficaram ao lado de sua rede, até que ele, a muito custo, mergulhasse no sono. Assisti a tudo sem proferir uma palavra. Mas o sono se foi. A alegre clarinada dos galos encontrou-me, naquela madrugada, com os olhos acesos e inquietos. Quando as tintas do alvorecer, ternas e tênues, filtraram-se pela telha de vidro, emprestando ao quarto um pouco de claridade, levantei-me.
Instantes depois estava eu à porta. O céu, tinto de sangue, era recado de um novo alvorecer. Uma luz leve e difusa começava a dar forma às pessoas e às coisas. Os primeiros madrugadores, voz meio apagada, conversa sussurrada, respeitavam o silêncio e a beleza do instante.
De repente, sinto uma mão em meu ombro. Era seu Aristides:
— O que foi isso, doutor? Caiu da rede? Nunca lhe vi tão cedo de pé? Está preocupado com alguma coisa?
Virei-me e não lhe dei resposta. Mas ele, lendo-me no olhar a resposta que eu não lhe dera, resolveu abrir o jogo. Foi lacônico:
— Pois é, doutor. E o que o senhor ouviu…
Na reticência, escutei os detalhes que ele não quis me dar.
Consultei minhas fichas. Havia apenas duas pequenas firmas a fiscalizar. Recém-escritas, o débito a levantar era de pequena monta. Um dia, no máximo, e tudo estaria encerrado.
As sombras e a “fresca” da tarde encontraram-me plantado à margem da estrada, à espera de uma condução que me levasse de volta a Fortaleza.
Viajei na boleia de um caminhão. Enquanto o FNM devorava o chão, eu batia papo com o motorista. Linguagem despida de atavios gramaticais, ele, na linguagem pitoresca do homem do interior, depois de alguns minutos de viagem, língua solta, começou a contar seus variados icausos”.
Suas engraçadas histórias, sincronizadas por um gargalhar metálico, penetraram-me a alma, apagando, a pouco e pouco, as desagradáveis lembranças dos dias passados em Tabuleiro de Areia.