Este fato singular ocorreu no primórdio da minha atividade como Fiscal de Previdência do ex-IAPI. Através de concurso público promovido pelo antigo DASP, ingressei no ex-IAPI, mas como não haviam vagas para o cargo de Fiscal no Rio de Janeiro, cidade onde residia e onde também fiz o concurso, fui nomeado, em agosto de 1964, para exercer a minha função no Estado de Minas Gerais.
No princípio, todos os que tinham sido nomeados, foram participar do curso preparatório, no qual era simulada a fiscalização de uma empresa, com exame de elementos, levantamento de débito, elaboração de relatório, preenchimento do antigo “TVD” e preenchimento do antigo “CFE”.
Embora para inscrição no referido concurso fosse exigido, exclusivamente, diploma de Contador ou de Técnico em Contabilidade, apesar de todos os recém-nomeados se encontrarem, consequentemente, familiarizados com a técnica contábil, a matéria que nos estava sendo ministrada era complexa e nos proporcionava, pela novidade, muitas preocupações, pois, em breve; estaríamos enfrentando os empregadores, naquela época nem sempre muito afáveis, embora, quando fôssemos para a rua — para a pasta — contaríamos com a companhia de um experiente colega.
Mas, como soe acontecer, antes da nossa “diplomação”, o ex-IAPI, através do seu então Presidente, resolveu promover, em fins de 1964, uma campanha de arrecadação e, concomitantemente, uma limpeza nos processos de débitos que se acumulavam nos arquivos.
O serviço que me coube realizar, consistia em visitar empresas situadas no sul de Minas e verificar se os débitos já haviam sido pagos ou convencer aos devedores a fazê-lo.
Como marinheiro de primeira viagem, lá fui eu para o sul de Minas, sobraçando dezenas de processos de empresas de diversas cidades, tais como: Santa Rita do Sapucaí, Delfim Moreira e Natércia.
Hotéis? Nenhum. Só pensões, algumas com pequeno conforto e outras… nem pensar. Em cada uma das citadas cidades, eu ia me acomodando da melhor maneira possível. Separava os processos da cidade onde me encontrava, alguns antiquíssimos, e saía eu numa aventura de pesquisador, tentando descobrir e localizar os inadimplentes empregadores, em sua maioria fabricantes de aguardente, tipo de indústria que se localizava, normalmente, em fazendas.
Para visitá-las, eu teria de contratar um táxi ou outro veículo, de preferência o jeep, este último melhor para o tipo de estrada que eu teria que percorrer.
Tateando daqui, tateando dali, com muito esforço e sacrifício, fui localizando as fabriquetas de cachaça, algumas com sua atividade encerrada. Como as penalidades legais, naquela ocasião, eram pequenas, fui obtendo algum sucesso e solucionei diversos processos.
Chegando à cidade de Natércia (onde, na região, as vogais acompanhadas de “r” têm uma pronúncia diferente), segui meu roteiro de trabalho. Ao tentar contratar um táxi, fui informado de que não havia esse tipo de serviço, mas que havia uma kombi, pertencente ao padre da cidade, que atendia a quem necessitasse de um transporte urbano.
Informaram-me onde poderia ser encontrado o citado padre (um senhor um pouco gordo) e, na residência do mesmo, o encontrei sentado, usando batina preta (um pouco desbotada), que me atendeu gentilmente.
Fiz a minha apresentação e revelei-lhe o motivo da minha presença, que era o de contratar os serviços da kombi para visitar diversas fazendas, onde se localizavam as fábricas de aguardente. Combinamos o preço. Em seguida, convidou-me para embarcar na kombi, que se encontrava estacionada defronte à sua residência, e comunicou-me que iria procurar o motorista do veículo para transportar-me aos locais desejados.
Sentei-me no banco da frente da kombi, do lado direito, e o padre sentou-se no lugar do motorista, dando partida ao veículo até a praça da cidade, no intuito, segundo ele, de localizar o dito motorista.
Circundamos a praça uma vez, duas vezes e nada do motorista. O padre, então, virando-se para mim, perguntou-me: “— Quais as fazendas que o senhor deseja ir?” Examinando os processos, informei-lhe os nomes de todas e seus possíveis endereços.
As estradas, por ser época de chuva, estavam enlameadas. A kombi derrapava. Mas, o padre, exímio motorista, saía galhardamente dos atoleiros e atingia tranquilamente a fazenda desejada. Permanecia sentado ao volante, à minha espera ou talvez para não sujar de lama a batina, enquanto eu conversava com o empregador.
E, assim, visitamos todas as fábricas de aguardente, contando com a colaboração e eficiência do padre amigo.
Creio, através desta história, ter sido eu um privilegiado Fiscal que teve UM PADRE COMO MOTORISTA.