Pobres são os que mais pagam impostos na América Latina

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Com o objetivo de analisar as diferenças na tributação dos países latino-americanos em relação aos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e de apontar caminhos para uma cobrança de impostos mais igualitária e eficiente, a Internacional de Serviços Públicos (ISP), em parceria com a fundação alemã Friedrich Ebert (FES), finalizou a publicação Justiça fiscal é possível na América Latina? O documento apresenta propostas de reformas tributárias que, se implementadas, aproximariam os patamares de impostos dos dois conjuntos de países, sem necessariamente aumentar a carga tributária total. Para isso, são apresentadas as propostas desenvolvidas conjuntamente pelo movimento sindical e acadêmico no Brasil, Chile e Costa Rica.

De acordo com o coordenador regional Tax-Trade ISP Interaméricas, Gabriel Casnati, “nos últimos anos, vivemos um momento de austeridade fiscal e corte de investimentos públicos na América Latina”. Nesse contexto, entre outras medidas, diversos governos estão impulsionando e defendendo a realização de reformas tributárias como parte do pacote de reformas necessárias para reaquecer a economia.Entretanto, essas propostas de reformas tributárias têm algo em comum: nenhuma delas tem como objetivo alterar a estrutura desigual da cobrança de impostos na região. Pelo contrário. Para ele, no geral elas mantêm a lógica de concentrar a maior proporção da arrecadação na tributação sobre o consumo, em vez de taxar proporcionalmente mais a renda e o patrimônio, e não reveem os privilégios tributários normalmente concedidos às parcelas mais ricas da população e às grandes empresas transnacionais, elementos que caracterizam a regressividade dos sistemas tributários na América Latina.

Porém, no Brasil, uma contraproposta importante vem servindo de modelo aos demais países. Trata-se de Reforma Tributária Solidária, elaborada pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) e Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco). Ela deve servir de base para os apontamentos da oposição à reforma tributária apresentada pelo deputado federal Baleia Rossi, em tramitação na Câmara dos Deputados, e defendida pelo governo federal.

JC Contabilidade – Como surgiu a ideia de fazer a pesquisa pelo ISP? Vocês já tinham se dedicado ao tema de cobrança de impostos e tributação?

Gabriel Casnati – O ISP está presente em mais de 160 países e pelas nossas filiadas sindicais a gente representa mais de 20 milhões de trabalhadores. Em nível mundial, participamos de várias redes muito importantes no tema de tributação e justiça fiscal. Atuamos, juntamente com especialistas, exatamente no tema de justiça tributária para a população em geral, investigando e denunciando o fato de as multinacionais não pagarem impostos e com pesquisas para quantificar o quanto os países perdem de dinheiro em manobras legais e ilegais para benefício de multimilionários. Um dos focos é em investigar como as empresas manipulam o comércio internacional e os preços no comércio exterior para não pagar imposto na América Latina. Para dar visibilidade a isso iniciamos uma investigação sobre a maior multinacional de fast-food do mundo e vimos como ela usava dessas manobras tributárias para diminuir os impostos pagos na América Latina. Essa empresa está respondendo até agora perante o parlamento europeu as nossas acusações.

Contabilidade – Sobre a pesquisa mais recente, a principal descoberta é a questão de que os mais pobres pagam maior volume de impostos na América Latina, diferentemente de outros países. Por que isso persiste? As propostas de reforma tributária em discussão em muitos países latino-americanos levam essa realidade em conta e lutam contra ela?

Casnati – A ideia do estudo vem de um contexto político latino-americano em que, tanto na direita quanto na esquerda, todos os governos estão colocando propostas de reformas na agenda. Diversos países já passaram, estão passando ou estão prestes a entrar em um processo de reforma tributária. No caso do Brasil, este é o momento de discutir isso também. No entanto, esse debate ainda é um tanto incipiente no nosso País e a grande maioria das propostas são inócuas para resolver o problema da desigualdade tributária. Mas o Brasil foi também onde tivemos a primeira grande proposta alternativa de reforma tributária chamada Reforma Tributária Solidária. Nossa ideia na ISP é, a partir da experiência brasileira, conseguir replicá-la para outros países da América Latina. Por isso, nesse momento quisemos traduzir a reforma solidária e comparar os países da nossa região com os países mais desenvolvidos.

Contabilidade – Mas até agora essa proposta não está sendo levada em conta na proposta em tramitação?

Casnati – Não. É a partir do diagnóstico de que as reformas apresentadas pelos governos na América Latina são inócuas em relação à desigualdade tributária existente que a gente aposta nessa proposta vinda do movimento sindical e que é tecnicamente viável para alterar o cenário atual. A proposta de Reforma Tributária Solidária consegue realmente diminuir impostos sobre consumo e aumentar os impostos sobre renda sem aumentar a carga tributária total do País. Essa é uma experiência de construção de alternativa pelo movimento social e que convida outros países da região para que não só rejeitem propostas ruins, mas também sugiram alternativas.

Contabilidade – A proposta defendida pelo governo federal resolve o problema de que os mais pobres pagam mais impostos no Brasil?

Casnati – Não. Muito pelo contrário, na verdade. O primeiro ponto que eles defendem é a questão da simplificação que por si só é um conceito muito amplo. Nós não negamos sua importância, porém negamos a tentativa de colocar a simplificação como a principal solução dos problemas da tributação brasileira. Além disso, existem falas por parte da equipe do ministro Paulo Guedes que demonstram interesse em reduzir tributo sobre a renda e criar novos impostos sobre o consumo que são medidas completamente impopulares.

Contabilidade – Quais os caminhos defendidos por vocês para combater a desigualdade na cobrança de impostos e a penalização da população de classes com menor renda?

Casnati – A diretriz principal da nossa proposta é alterar as bases de incidência da carga tributária sem aumentar a carga tributária total. Alterando a distribuição da carga tributária, nossos cálculos estimam que menos de 1% da população teria aumento nos impostos pagos. No caso do Imposto de Renda, por exemplo, uma boa proposta para a população em geral é criar uma faixa de isenção maior e mais faixas de escalonamento para as alíquotas do imposto. Com isso, em torno de 3% dos contribuintes teriam um aumento do imposto de renda, mas, em compensação, quem ganha até 15 salários poderia ter alíquotas menores. Além disso, é indispensável criar a tributação sobre lucros e dividendos e um pequeno imposto sobre transações financeiras diferente da CPMF, a ser cobrado apenas de grandes contribuintes. Por outro lado é crucial desonerar tributos sobre consumo no geral, principalmente daqueles bens básicos, e a redução na carga de impostos sobre a folha de pagamentos, colaborando com o desenvolvimento das empresas menores.

Contabilidade – Como o grupo responsável por promover essa proposta pretende fazer com que ela seja levada em conta?

Casnati – Esse debate está mais aberto do que a reforma previdencia e é mais complexo. A Reforma Tributária ainda deve ser muito discutida e acreditamos que nossa proposta é mais justa. Acreditamos que há uma possibilidade de diálogo grande pela frente e estamos apostando nisso. A Fenafisco já está fazendo reuniões com parlamentares de diversos partidos para apresentar a proposta e detalhar seus principais pontos.

Contabilidade – Como você avalia a proposta de reforma tributária brasileira e de outros países latino-americanos em relação ao que é praticado em países mais desenvolvidos economicamente?

Casnati – O contexto da América Latina é de austeridade. As propostas vão no caminho de aumentar impostos sobre consumo e, no máximo, conceder benefícios fiscais a algumas empresas. De forma geral, a proposta brasileira só aprofunda o que já existe de muitos tributos sobre consumo. A conta da austeridade está caindo sobre os mais pobres através do aumento nos impostos sobre consumo. Na América Latina, tudo o que vejo nos últimos cinco anos, caminha na direção oposta ao que é praticado na Europa.

Fonte: Jornal do Comércio RS