Aumentar a tributação dos super-ricos é indispensável para tirar o país do atoleiro, avalia o economista Eduardo Fagnani
As propostas de emenda à Constituição que tramitam no Congresso, inclusive as encaminhadas pelo Executivo, limitam-se a simplificar a cobrança de impostos que incidem sobre o consumo, sem aumentar a capacidade de arrecadação do Estado nem combater os mecanismos que favorecem a concentração de renda e patrimônio no País. “Se essa proposta era insuficiente e injusta antes da crise do coronavírus, agora ela se tornou absolutamente anacrônica”, avalia o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e coordenador do recém-divulgado estudo “Tributar os Super-ricos para Reconstruir o Brasil”. O documento é uma iniciativa de entidades representativas dos auditores fiscais que integram o projeto da Reforma Tributária Solidária, como AFD, Anfip, Fenafisco e Sindifisco.
Na entrevista a seguir, Fagnani explica as diretrizes da proposta que, segundo o grupo, seria capaz de gerar um acréscimo na arrecadação de 292 bilhões de reais para financiar o Estado.
CartaCapital: Qual é a dimensão da crise?
Eduardo Fagnani: O Banco Mundial prevê a maior recessão global desde a Segunda Grande Guerra. Para o Fundo Monetário Internacional, é uma crise como nenhuma outra, de recuperação incerta. Segundo a OCDE, no fim de 2021 a perda de receita vai superar aquela de todas as recessões anteriores dos últimos cem anos, exceto nos períodos da guerra. Os relatórios da Cepal preveem um cenário devastador na América Latina, em termos de queda do PIB, aumento do desemprego, da pobreza e das desigualdades. O Financial Times, bíblia do mercado financeiro e do liberalismo, recomendou em um editorial recente que os líderes mundiais aprendam com aqueles que enfrentaram a Grande Depressão, após o Crash de 1929, e a crise depois da Segunda Guerra Mundial. Ou seja, propõe uma reedição do New Deal e do Plano Marshall.
CC: O Brasil parece caminhar na direção contrária. Paulo Guedes parece mais preocupado em implantar o regime de capitalização na Previdência e liberar a contratação dos trabalhadores por horas, sem recolhimento de FGTS e INSS.
EF: Em recente artigo publicado em CartaCapital, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo fez uma observação muito pertinente. As ideias, no Brasil, costumavam chegar de navio. Agora chegam em carro de boi. Há tempos, Thomas Piketty tem demonstrado como a tributação teve um papel central para financiar o Estado nas grandes crises. Para ele, as duas inovações mais importantes na questão fiscal são os impostos progressivos sobre renda e patrimônio. Estamos, porém, discutindo uma reforma tributária que apenas simplifica a cobrança de impostos sobre o consumo e não gera um real a mais.
CC: Quando se fala em elevar a alíquota do Imposto de Renda ou taxar grandes fortunas, setores da classe média sentem calafrios. Quem, exatamente, seria atingido?
EF: O imposto sobre grandes fortunas que propomos alcança quem tem patrimônio superior a 10 milhões de reais. De acordo com dados do Fisco, são 60 mil contribuintes, 0,028% da população brasileira. A taxa varia de 0,5% a 1,5% para quem tem bens com valores superiores a 80 milhões de reais. Detalhe: o tributo seria cobrado sobre o montante que excede esse valor. Ou seja, se o indivíduo tem um patrimônio de 11 milhões de reais, ele pagaria 0,5% sobre o milhão excedente.
CC: E as mudanças no Imposto de Renda?
EF: Hoje, temos quatro alíquotas no Imposto de Renda, que chegam ao teto de 27,5%. O trabalhador que ganha 5 mil reais por mês e o executivo com remuneração de 200 mil pagam o mesmo porcentual. Queremos aumentar o número de alíquotas de quatro para sete, bem como elevar a taxa incidente sobre os mais ricos de 27,5% para 45%. Dessa forma, ampliamos a progressividade e aproximamos a tributação brasileira à média dos países da OCDE. Ou seja, somente quem ganha acima de 23,8 mil reais pagaria uma alíquota nominal maior. Mas a alíquota efetiva, descontadas as deduções, só ficaria maior para quem ganha mais de 30 mil reais ao mês, cerca de 0,3% da população. Em contrapartida, quem ganha até três salários mínimos ficaria isento, o que representa 34% do total de contribuintes. E a alíquota máxima, de 45%, incidiria sobre 60 mil contribuintes, 0,028% da população.
CC: Imagino que o grupo defende o fim da isenção sobre lucros e dividendos, um legado de FHC…
EF: Sem dúvida. Os quatro maiores bancos do País acumularam um lucro de 81,5 bilhões de reais em 2019. Uma parcela disso será distribuída entre os acionistas da instituição. Se um dos sócios receber 500 milhões de reais, ele estará isento de pagar imposto sobre este valor, enquanto o trabalhador que ganha 5 mil reais terá um desconto de 27,5% na folha de pagamento. É um descalabro. Mas não basta apenas taxar lucros e dividendos, a forma como se tributa também é importante.
CC: Como assim?
EF: Tem propostas na praça que sugerem cobrar 15% de todo mundo, indistintamente. Mas a Constituição diz que a tributação tem de ser de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Por isso propomos que todas as rendas sejam taxadas de forma progressiva, conforme a tabela usada no IRPF. Então, um microempresário com renda de 20 mil reais por mês pagará 27,5%, ao passo que o acionista do banco com lucros milionários pagará 45%.
CC: O documento também fala em aumentar a repartição das receitas com estados e municípios.
EF: Esse é um ponto importante. Os auditores que participaram do estudo estimam que o conjunto de medidas propostas deve gerar um acréscimo de arrecadação de quase 292 bilhões de reais.
Nesse sentido, propomos que 8% da arrecadação do Imposto de Renda e 10% da arrecadação do Imposto sobre Grandes Fortunas sejam repartidos com os estados e que 2% do IR e 10% do IGF sejam repartidos com os municípios.
CC: Qual é a lógica por trás desse conjunto de medidas?
EF: Garantir o financiamento do Estado e transferir renda do rico para o pobre.
Dessa forma, é possível alavancar o consumo, pois o pobre gasta quase tudo o que ganha, enquanto o rico acumula dinheiro. Ao mesmo tempo, é preciso aliviar o peso da tributação sobre as pequenas empresas, que geram muito emprego e estão muito vulneráveis neste contexto de pandemia.
Fonte: Carta Capital