A riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo mais que dobrou (114%), desde 2020, enquanto quase cinco bilhões de pessoas ficaram mais pobres no período. É o que aponta o relatório Desigualdade S.A., da Oxfam, divulgado neste domingo (14), no início do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.
As fortunas somadas dos cinco passaram de US$ 405 bilhões para US$ 869 bilhões, ou seja, cresceram a uma taxa de US$ 14 milhões por hora. Segundo o relatório, seguindo essa toada, o mundo terá seu primeiro trilionário em uma década, para a alegria dos que celebram a riqueza alheia, mas a pobreza não será erradicada nos próximos 229 anos.
De acordo com a Oxfam, 791 milhões de trabalhadores viram seus salários ficarem abaixo da inflação e perderam US$ 1,5 trilhão nos últimos dois anos, o equivalente a 25 dias de salários perdidos para cada pessoa.
Analisando a concentração de riqueza no Brasil, a Oxfam aponta que quatro dos cinco brasileiros mais ricos tiveram um aumento de 51% em sua fortuna desde 2020. Ao mesmo tempo, 129 milhões de brasileiros ficaram mais pobres. A pessoa mais rica concentra riqueza equivalente a 107 milhões, ou seja, mais da metade do país.
Por aqui, segundo o relatório, o 1% mais rico detém 60% dos ativos financeiros do país. Considerando que o 1% mais rico do mundo concentra 43% dos ativos financeiros globais, sendo 47% na Europa, 48% no Oriente Médio e 50% na Ásia, a desigualdade brasileira continua uma das piores do planeta.
“O Brasil tem na sua agenda de 2024 a oportunidade de corrigir um erro histórico iniciado nos anos 1990: o retorno da taxação sobre lucros e dividendos, isentos na tributação sobre a pessoa física”, afirmou à coluna Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil.
“Segundo dados da Receita, o 1% mais rico do Brasil recebeu R$ 411,91 bilhões em lucros e dividendos em 2021 com pagamento zero de Imposto de Renda de Pessoa Física. Em comparação, o orçamento federal previsto para o Bolsa Família em 2024 é de cerca de R$ 170 bilhões, beneficiando 21 milhões de famílias, cerca de 60 milhões de pessoas”, diz.
Na avaliação da Oxfam, a concentração de renda na mão de poucos se solidificou enquanto a pobreza global permanece em níveis anteriores à da pandemia de covid-19. De uma maneira geral, os bilionários estão US$ 3,3 trilhões mais ricos do que em 2020 e sua riqueza cresceu três vezes mais rápido do que a taxa de inflação no período.
Das maiores empresas, só 0,4% se preocupam com salário digno
Sete das dez maiores corporações do mundo têm um bilionário como CEO ou como seu principal acionista e valem US$ 10,2 trilhões, mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) somado de todos os países da América Latina e da África.
Enquanto a pobreza global avança, as maiores empresas do mundo vão quebrar recordes de lucros em 2023. Juntas, as 148 maiores arrecadaram US$ 1,8 trilhão em lucros totais nos seis primeiros meses do ano passado, 52% a mais do que média de lucro líquido observada entre 2018 e 2021.
O relatório Desigualdade S. A. aponta que a cada US$ 100 de lucro obtido por cada uma das 96 maiores empresas do mundo, entre julho de 2022 e junho de 2023, US$ 82 foram pagos a seus acionistas mais ricos. E que tributar esses lucros inesperados, que excedem em 20% a média dos anos anteriores, em 90% geraria quase US$ 628 bilhões de dólares para combater a pobreza.
Análise da Oxfam sobre os dados da World Benchmarking Alliance para mais de 1.600 das maiores e mais influentes empresas do mundo mostra que apenas 0,4% delas estão publicamente comprometidas com o pagamento de um salário digno a seus empregados e apoiam o pagamento de salário dignos em suas cadeias de valor.
E apenas 0,7% delas cumpre plenamente os padrões globais de negociação coletiva com os trabalhadores e que 2,6% dessas empresas divulgam informações sobre a proporção de salários entre mulheres e homens.
A Oxfam defende que a guerra das grandes empresas contra a tributação resultou em redução significativa do imposto sobre elas, um terço do que era praticado nas últimas décadas. A organização aponta que isso ocorreu enquanto as corporações abocanharam partes do setor público, ficando responsáveis por serviços como água, o que causou problemas de acesso a esse direito em várias partes do mundo.
Para interromper o acúmulo desigual de riqueza, a Oxfam recomenda investimento pesado em serviços públicos, regulação de empresas, quebra de monopólios e, claro, impostos permanentes sobre riqueza e lucros.
Para a organização, se apenas 10% das empresas dos Estados Unidos fossem propriedade dos trabalhadores, isso duplicaria a parcela de riqueza média da metade mais pobre da população do país, incluindo a das famílias negras.
A Oxfam também defende a quebra de monopólios, a democratização das regras de patentes, legislar sobre salários dignos, limitar os salários dos CEOs e criar novos impostos para os super-ricos e empresas, incluindo taxas sobre a riqueza permanente e sobre lucros excessivos. Estima que um imposto sobre a riqueza sobre os milionários e bilionários do mundo poderia gerar US$ 1,8 trilhão por ano.
Taxação de super-ricos no Brasil será discutida este ano
A primeira etapa da Reforma Tributária aprovada pelo Congresso obriga o governo Lula a apresentar um projeto de mudança no imposto de renda em até 180 dias da promulgação da emenda constitucional. O que pode ajudar a reduzir a desigualdade social ao taxar de forma progressiva os super-ricos.
Super-ricos no Brasil pagam proporcionalmente menos impostos que os pobres (via consumo) e a classe média (via renda). Para reduzir a injustiça tributária, uma reforma traria de volta a taxação sobre dividendos recebidos de empresas (abolida no governo Fernando Henrique em 1995) e reajustaria a tabela do Imposto de Renda (há propostas de isentar a maior parte da classe média e criar alíquotas de 30 a 40% para os que ganham muito).
“Não taxar de forma expressiva lucros e dividendos do 1% mais rico do Brasil chega a ser um escárnio. Bilionários e super ricos deveriam ser os primeiros a dizer: devemos e queremos ser taxados”, avalia Kátia Maia, da Oxfam Brasil.
“Eu diria que, mais do que uma oportunidade que a segunda etapa da reforma apresenta para o Brasil, essa é uma agenda obrigatória para quem tem compromisso com o desenvolvimento do país”, diz.
O texto da primeira etapa da reforma aprovado pelos deputados e senadores aponta que caso a nova taxação de renda gerar excedentes, eles podem ser usados para reduzir o custo da folha de pagamento e os tributos sobre o consumo. Porque é através do imposto pago na compra de produtos que os muito pobres, isentos do imposto de renda, contribuem proporcionalmente bem mais que os ricos.
No pacote também está a obrigatoriedade da progressividade do ITCMD, o imposto sobre heranças e doações – o que já é adotado por parte dos estados. Apesar de a medida ter sido celebrada, continuamos com teto de 8%, enquanto as alíquotas sobre herança chegam a 30% na Alemanha, 40% nos Estados Unidos, 45% na França e 50% no Japão.
Tributar os super-ricos pode arrecadar cerca de R$ 292 bilhões anuais. É o que defenderam a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), os Auditores Fiscais pela Democracia (AFD), o Instituto Justiça Fiscal (IJF), entre outras instituições. Eles apresentaram 11 propostas legislativas que estão em consonância com o plano de Reforma Tributária formulado por seis partidos de oposição, que também tramita no Congresso.
Apenas o Imposto sobre Grandes Fortunas arrecadaria R$ 40 bilhões nos cálculos desse grupo de entidades, maior que o orçamento do Bolsa Família. O resto viria de uma maior progressividade do Imposto de Renda de Pessoa Física (R$ 160 bilhões, incluindo a taxação progressiva de dividendos), no aumento temporário da alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido de setores econômicos com alta rentabilidade (R$ 30 bilhões), pela criação da Contribuição Social Sobre Altas Rendas (R$ 25 bilhões), entre outros.
A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.
A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado, aqui é razão de orgulho. O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir a diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e a ascensão social, mitificada. Assim, o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva, mas um lugar ao sol para si mesmo.
Fonte: Leonardo Sakamoto/UOL