Floriano Martins de Sá Neto
Há exatos 96 anos, foi sancionado pelo Congresso Nacional o Decreto nº 4.682 de 24 de janeiro de 1923, também conhecido como Lei Eloy Chaves, onde as empresas de estradas de ferro existentes no país deveriam formar uma caixa de aposentadoria e pensões para seus respectivos empregados. Este é o marco histórico da legislação previdenciária no Brasil.
Os anos passaram e com o crescente processo de industrialização, bem como uma crescente necessidade de proteção trabalhista, a Previdência se expandiu. Foram criados diversos institutos, tais como o de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), em 1933, dos Comerciários (IAPC) e Bancários (IAPB), em 1934, dos Industriários (IAPI), 1936, e inúmeras outras categorias nos anos seguintes. Em 1966, em virtude da real necessidade de ampla cobertura, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, unificando todos os institutos que atendiam os trabalhadores do setor privado.
Como se vê, a legislação previdenciária brasileira evoluiu ao longo dos anos em paralelo com aos anseios da população e do Estado, representando um pilar da democracia e tendo como parte dos propósitos a redução da pobreza e das desigualdades sociais pautados em um modelo de Estado de bem-estar social. O auge dessa que é a maior rede de proteção social brasileira veio com o capítulo referente à Seguridade Social na Constituição de 1988.
As desigualdades existentes em nosso país ainda são gritantes, mas as reformas da Previdência que vêm sendo propostas estão longe de atenuar essa disparidade e mais distante ainda de equacionar os reais problemas do nosso sistema de Seguridade.
A PEC 287/16 apenas legitimou mais uma tentativa de desmonte dos direitos sociais conquistados pelo trabalhador brasileiro, seja pela proposta original ou pelo substitutivo, na tentativa de fazer ser aprovado o Projeto pelo Congresso.
O fato é que não se alterou o caráter geral de seu conteúdo, que era o de promover uma mudança ampla e profunda da Previdência pública brasileira, tanto no Regime Geral, quanto nos Regimes Próprios, reduzindo substancialmente o valor desses benefícios e retardando o início do período de gozo. Ainda que algumas restrições ao alcance da Assistência Social tenham sido atenuadas, a proposta continuou com a ampliação da desproteção social de segmentos sociais mais vulneráveis. Um exemplo foi a exigência de um mínimo de 25 anos de contribuição para se ter o direito social básico a aposentadoria. Com a alta rotatividade de trabalhadores, a elevada informalidade e a longa duração de desemprego, a dificuldade encontrada em acumular esse tempo mínimo de contribuição provavelmente faria com que grande parte dos trabalhadores se encontrasse desprotegida no fim da vida laboral, assim como suas famílias. A quase consumada reforma (PEC 287) apenas promoveria a minimização da Previdência pública, assumindo uma perspectiva meramente financeira com o objetivo de reduzir as despesas correntes em detrimento da função de proteção social da Previdência e da Assistência. Com pouca margem de erro essa era a intenção, fragilizar a Previdência Social; corroer a confiança nela depositada pelos cidadãos para, em seguida, estimular a difusão de sistemas privados de previdência.
Não bastasse essa proposta, o atual governo mantém o objetivo comum dos últimos projetos de reforma da Previdência, o de tentar, a todo custo, reduzir o denominado rombo crescente do sistema. As alegações convergem no sentido de que é preciso ter uma idade mínima, de tornar mais rígidas as regras de acesso, de desvinculações de benefícios do salário mínimo, tudo isso por estar havendo envelhecimento populacional crescente que levará o país a um insustentável colapso financeiro. Mas, indubitavelmente, a mudança de sistema (repartição, para capitalização), parte da atual proposta, talvez seja, dentre todos os caminhos, o mais tortuoso.
O Chile, país pioneiro do sistema de capitalização em 1981, é o maior exemplo de fracasso dessa mudança de regime. De forma categórica é possível perceber que desde o início da privatização, devido ao crescente aumento dos gastos com aposentadorias, em 1980, a reforma, além de não conseguir resolver o problema fiscal no Chile, desencadeou um agravante, só consumado três décadas depois: a falta de recursos para pagamento de aposentadorias. A capitalização vem devolvendo aos aposentados chilenos uma média equivalente a cerca de 80% do salário mínimo pago a maioria dos beneficiários no Brasil.
Segundo a OIT, de 1981 a 2014, trinta países privatizaram total ou parcialmente suas pensões públicas obrigatórias; a partir de 2018, dezoito países reverteram as privatizações, o que mostra a falha dessa mudança de regime. Ainda segundo a OIT, o fortalecimento do seguro social público, associado a pensões solidárias não contributivas, conforme recomendado pela própria Organização, melhorou a sustentabilidade financeira dos sistemas previdenciários, tornou os direitos previdenciários melhores e mais previsíveis. A responsabilidade dos Estados de garantir a segurança de renda na velhice é mais bem alcançada com o fortalecimento dos sistemas públicos de previdência.
Pelo que se vê das experiências internacionais, o sistema de capitalização não é suficiente para enfrentar as demandas da população, especialmente diante de médios e baixos rendimentos, tornando de extrema importância a compensatória figura do Estado. Por isso, ao se analisar modelos de reforma, como o do Chile, e até mesmo o argentino, conclui-se que os objetivos econômicos tiveram grande influência na formulação dos projetos de reforma, ao passo que os objetivos sociais ficaram em segundo plano.
Durante o período ditatorial de Pinochet os chilenos não tiveram espaço e nem oportunidade de debater propostas. O autoritarismo e a repressão, típicos daquele governo, facilitaram o processo de instalação das AFP’s no país. Hoje o povo está indo às ruas com seus cartazes “No + AFP”, pedindo o retorno do modelo de repartição solidário com financiamento tripartite: trabalhadores, empresários e Estado.
Floriano Sá Neto é presidente da ANFIP