Luiz Alberto dos Santos*
A EC 103/19 e a extinção do vínculo empregatício dos empregados públicos aposentados
Entre as múltiplas perdas impostas aos trabalhadores regidos pela CLT, servidores públicos, aposentados e pensionistas, a Emenda à Constituição (EC) 103, de 2019, a “Nova Previdência” de Bolsonaro e Guedes, trouxe inovações cujo grau de crueldade e perversidade chegam às raias do inacreditável.
Uma dessas inovações é a previsão, inserida na redação dada ao § 14 do artigo 37 da Constituição, de que “a aposentadoria concedida com a utilização de tempo de contribuição decorrente de cargo, emprego ou função pública, inclusive do (RGPS) Regime Geral de Previdência Social, acarretará o rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de contribuição.”
Tal redação substituiu a proposta inicial do Executivo, que previa, na forma de novo § 10 do artigo 37, que seria “vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria do Regime Próprio de Previdência Social de que trata o artigo 40, de proventos de inatividade, de que tratam os artigos 42 e 142 e de proventos de aposentadoria do Regime Geral de Previdência Social, de que trata o artigo 201, decorrentes do exercício de cargo, emprego ou função pública, com a remuneração de cargo, emprego ou função pública”, ressalvados os cargos acumuláveis na forma prevista na Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração.
Caso essa proposta viesse a ser aprovada, estaria vedada a acumulação de salário de servidor efetivo ou empregado permanente com proventos de aposentadoria decorrente de cargo ou emprego público da mesma natureza. E mesmo que o servidor/empregado público houvesse se aposentado pelo RGPS ele não poderia ingressar em novo cargo/emprego e acumular o benefício com a remuneração, exceto no caso de cargo em comissão.
Ao rejeitar essa proposta, porém, a comissão especial da Câmara dos Deputados que apreciou a PEC 6, de 2019, deu novo tratamento à matéria, que acabou por ser acatada pelos plenários das 2 Casas Legislativas.
Histórico
A tentativa não é inédita: no governo FHC, foram alterados pela Lei 9.528, de 1997, os §§ 1º e 2º do artigo 453 da CLT, que passaram a prever, que, na aposentadoria espontânea de empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista seria permitida sua readmissão desde que atendidos aos requisitos constantes do artigo 37, inciso XVI, da Constituição, quanto à acumulação de cargos e empregos, e condicionada à prestação de concurso; e que o ato de concessão de benefício de aposentadoria a empregado que não tiver completado 35 anos de serviço, se homem, ou 30, se mulher, importaria em extinção do vínculo empregatício.
Contudo, em 1998 o STF afastou a vigência dessas normas, ao deferir liminar nas ADI (ações diretas de inconstitucionalidades) 1721-3 e 1770-4, e, em 2006, declarou, em definitivo, a inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 453 da CLT, por considerar inexistente a incompatibilidade entre a aposentadoria e a continuidade do vínculo empregatício, e haver violação aos preceitos constitucionais relativos à proteção do trabalho e à garantia à percepção dos benefícios previdenciários.
Em consequência dessa decisão, o TST (Tribunal Superior do Trabalho), em outubro de 2006, também cancelou a OJ (Orientação Jurisprudencial) 177 da SDI-1, que assim definia o direito à indenização no caso de extinção do vínculo decorrente de aposentadoria voluntária:
“A aposentadoria espontânea extingue o contrato de trabalho, mesmo quando o empregado continua a trabalhar na empresa após a concessão do benefício previdenciário. Assim sendo, indevida a multa de 40% do FGTS em relação ao período anterior à aposentadoria”.
No mesmo sentido, o TST adotou a Orientação Jurisprudencial 361 da SBDI-1, que assim define:
“Aposentadoria espontânea. Unicidade do contrato de trabalho. Multa de 40% sobre todo o período. A aposentadoria espontânea não é causa de extinção do contrato de trabalho se o empregado permanece prestando serviços ao empregador após a jubilação. Assim, por ocasião de sua dispensa imotivada, o empregado tem direito à multa de 40% do FGTS sobre a totalidade dos depósitos efetuados no curso do pacto laboral (DJ de 20.05.2008).”
Contudo, não está em jogo a discussão de ser ou não estável o empregado público que se aposenta e permanece em atividade, pois a estabilidade é assegurada apenas ao titular de cargo efetivo. Segundo o voto do ministro Ayres Brito, na ADI 1.710,
“Nada impede, óbvio, que, uma vez concedida a aposentadoria voluntária, possa o trabalhador ser demitido. Mas acontece que, em tal circunstância, deverá o patrão arcar com todos os efeitos legais e patrimoniais que são próprios da extinção de um contrato de trabalho sem justa motivação”.
Ao constitucionalizar a matéria, assim, a EC 103 pretende afastar, pelo menos sob o prisma formal, o vício de inconstitucionalidade já reconhecido pelo STF, e validar o que, desde 1998, já vem sendo intentado no bojo das “reformas” de caráter neoliberal, e que retornou com redobrado vigor na PEC 6, de 2019.
Servidores públicos
Como se percebe a partir da localização do dispositivo da EC 103, de 2019, no capítulo que trata da Administração Pública, a norma se dirige a servidores públicos civis, sejam eles empregados públicos ou estatutários.
Na forma incorporada ao texto constitucional, e em vigor desde 13 de novembro de 2019, com validade para todos os entes da Federação, ou seja, não depende de qualquer medida posterior para sua produção de efeitos em âmbito federal, estadual, distrital ou municipal, se o servidor ou empregado público vier a se aposentar, o simples fato de deter essa condição acarretará a extinção do vínculo estatutário ou celetista que esteja em vigor na data da aposentadoria. Para esse fim, bastará que o órgão ou entidade ao qual o servidor está vinculado tenha ciência do ato de aposentadoria, no caso de ser ela concedida pelo INSS, para que se opere a extinção do vínculo estatutário ou celetista.
Uma questão a considerar, é se o segurado do RGPS, que não seja servidor público, mas empregado em empresa privada, e que se aposente computando tempo de contribuição como servidor público, estará sujeito à mesma penalização, ou seja, se a concessão de aposentadoria geraria a extinção do vínculo empregatício. Nesse caso, contudo, a parte final do dispositivo explicita uma vinculação entre o tempo de serviço público empregado, e o rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de contribuição. Assim, a norma não se aplica a quem, tendo sido servidor ou empregado público, esteja, na data da aposentadoria, exercendo atividade em empresa privada. Nesse caso, não haverá a extinção compulsória do vínculo empregatício.
Mas o mesmo não ocorrerá se alguém, que tenha sido servidor ou empregado público, deixe de sê-lo, e continue a contribuir para o RGPS como empregado de empresa privada ou contribuinte individual, volte a ser titular de emprego público e, então, requeira a aposentadoria. Nesse caso, só fato de estar no exercício do cargo ou emprego público, com a contagem desse tempo de contribuição, geraria a extinção do vínculo.
Paradoxalmente, porém, se o empregado público não computar, para fins de aposentadoria que venha a requerer, o tempo de contribuição do cargo ou emprego que estiver exercendo, mas apenas tempos anteriores, ainda que de atividade no serviço público ou empresa estatal, em decorrência de outro vínculo, não haveria a extinção do vínculo ativo, pois o que diz o dispositivo é que a aposentadoria nessa condição “acarretará o rompimento do vínculo que gerou o referido tempo de contribuição”.
Afronta ao princípio da igualdade
Tal regra, anômala e contrária ao princípio da igualdade, e por isso mesmo questionável quanto a sua validade constitucional, somente afeta empregados públicos, posto que empregados de empresas privadas não estariam atingidos. Mas ambos, porém, são segurados do Regime Geral de Previdência Social, por definição, e aos quais deveria ser aplicado idêntico tratamento, no que tange aos efeitos previdenciários de suas relações de emprego ou de tempo de contribuição.
Há outro aspecto problemático, que é o objetivo dessa norma quanto à servidores estatutários que, com fundamento na Lei 9.717, de 1998, passaram a ser regidos pelo RGPS. Em função da conveniência administrativa, entes subnacionais, notadamente municípios, extinguiram os respectivos regimes próprios de Previdência e passaram a vincular seus servidores titulares de cargo efetivo ao RGPS. Tal aberração jurídica levou a que, em alguns casos, houvesse o entendimento de que esses servidores estatutários, caso se aposentassem pelo RGPS, poderiam continuar no exercício de seus cargos efetivos, dada a separação do regime de cargo efetivo e o regime previdenciário.
Não ocorre tal situação, porém, no caso de servidor titular de cargo efetivo, e que seja vinculado ao Regime Próprio de Previdência, visto que é causa legalmente prevista da vacância do cargo efetivo a concessão da aposentadoria pelo Regime Próprio. Nesse caso, por exemplo, a Lei 8.112, de 1990, que rege os servidores públicos federais, já prevê, desde sempre, que no caso da aposentadoria concedida pelo Regime Próprio da União, o servidor deixa de exercer o cargo efetivo, e o mesmo pode ser provido por outro indivíduo, mediante concurso público.
Cargo em comissão
Não é a mesma regra aplicável ao titular de cargo em comissão: não havendo a situação de efetividade, o servidor efetivo que se aposenta pode continuar a exercer o cargo em comissão, da mesma forma que o titular de cargo em comissão, que não seja titular de cargo efetivo, e que é segurado obrigatório do RGPS, não é afetado pela vacância compulsória em caso de optar pela aposentadoria.
Com a nova regra, porém, o servidor comissionado, assim como o estatutário vinculado ao RGPS, que requeiram a aposentadoria tempo de contribuição nessa condição, passarão a ser compulsoriamente desligados, da mesma forma que já ocorre quanto ao estatutário vinculado ao regime próprio.
Em todos os casos, portanto, caracterizando-se a extinção do vínculo como compulsório e decorrente de aposentadoria voluntária do empregado ou servidor, estará afastada a condição para o pagamento de multa indenizatória sobre o saldo da conta vinculada do FGTS, ou seja, o empregado público que se aposentar não fará jus, por força da extinção compulsória do vínculo, à multa indenizatória, dado que essa somente é devida no caso de demissão imotivada. Trata-se do mesmo objetivo buscado pela redação dada ao artigo 453 da CLT em 1998 e julgada inconstitucional pelo STF.
A regra, contudo, somente se aplica a aposentadorias concedidas a partir de 13 de novembro de 2019. Esse é o comando expresso do artigo 6º da EC 103:
“Art. 6º O disposto no § 14 do artigo 37 da Constituição Federal não se aplica a aposentadorias concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional.”
Para esse fim, porém, o que importa não é a data do ato de concessão, mas a data do início do benefício, ou seja, a data em que foi requerido validamente, nos termos do artigo 49 da Lei 8.213, de 1991. Mesmo que a concessão tenha se dado a posteriori, havendo o direito sido adquirido até 12 de novembro de 2019, ou seja, antes da EC 103 entrar em vigor, e requerido nessa condição, estará resguardada a preservação do vínculo, mesmo que a aposentadoria seja concedida a partir de 13 de novembro de 2019.
Apenas para os futuros
Assim, foi afastada a aplicação geral e imediata aos empregados públicos e servidores estatutários já aposentados em 13 de novembro de 2019, mas que mantiveram seus vínculos, da regra de extinção do vínculo. Caso não houvesse sido acolhida tal regra de transição pela comissão especial na Câmara dos Deputados, empresas estatais como Embrapa, Banco do Brasil, Caixa e Petrobras seriam fortemente atingidas, com milhares de empregados públicos em atividade sendo imediatamente desligados de seus empregos, por já estarem em gozo de aposentadoria. Estimativa apresentada pelo deputado Domingos Neto (PSD-CE) em emenda apresentada à PEC 6, de 2019, apontava a existência de mais de 70 mil trabalhadores de empresas estatais que se aposentaram e que continuavam em atividade.
Mas mesmo esses empregados públicos, que não serão imediatamente afetados, porém, estarão sujeitos a alteração relevante em suas relações empregatícias.
Também com caráter anti-isonômico, foi aprovada a proposta de Guedes e Bolsonaro para submeter os empregados das empresas públicas, das sociedades de economia mista e das suas subsidiárias à aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade, mesma regra fixada para os servidores estatutários.
Assim, ao atingir essa idade, o empregado público, da mesma forma como já ocorre com o servidor estatuário, terá extinguido o seu vínculo, descaracterizando-se, para fins indenizatórios, a aposentadoria imotivada.
Aqueles que já se acham aposentados, poderiam, em tese, ser excluídos dessa regra, mas haveria, aí, duplo absurdo, pois, além de já estarem aposentados, poderiam permanecer em atividade na empresa além dos 75 anos de idade, quando seus colegas estariam sujeitos a dupla penalização: extinção do vínculo, ao se aposentarem, ou aposentadoria compulsória, aos 75 anos…
Importante registrar que, em sua proposta original, a PEC 6, de 2019, previa que o vínculo empregatício mantido no momento da concessão de aposentadoria voluntária não ensejaria o pagamento da indenização compensatória prevista no inciso I do caput do artigo 7 º da Constituição, nem o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço devido a partir da concessão da aposentadoria. Tal proposta, dada a sua grosseira iniquidade e fragilidade política e jurídica, acabou por ser rejeitada pela comissão especial da Câmara dos Deputados.
Inconsistência jurídica
São demonstrações cabais da inconsistência jurídica e da perversidade da EC 103, de 2019, que, exigida pelo mercado, foi aprovada de forma açodada e irresponsável pelo Congresso, com afronta ao devido processo legislativo, às cláusulas pétreas da Carta de 1988 e ao princípio da proporcionalidade, elevando ao nível constitucional aberrações como as que foram examinadas ao longo dessa análise.
Como decorrência da vigência e efeitos da EC 103, empresas estatais como o Banco do Brasil já estão exigindo que seus empregados informem se requereram aposentadoria a partir de 13 de novembro de 2019, com o objetivo de dar cumprimento à nova regra constitucional. Com efeito, a norma não admite transação ou juízo de conveniência, e é de aplicação obrigatória. Ocorre que o empregado não pode ser obrigado, senão por força de lei, a prestar tal informação, e sofrer qualquer penalidade em caso de não fornecê-la voluntariamente, e caberá às empresas, e ao governo e ao INSS, regulamentarem a situação, por meio, por exemplo, de comunicação compulsória do INSS às empresas estatais, quanto a aposentadorias concedidas a seus empregados.
(*) Advogado. É consultor legislativo do Senado Federal e sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas. Também é colaborador do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).