A crise abre espaço para o debate sobre a taxação das grandes fortunas
Benedita da Silva*
A hegemonia mundial de 40 anos da desumana política neoliberal, que só produz desigualdade social onde é adotada e resistiu até mesmo ao choque da crise financeira de 2008, parece que não escapará dos devastadores impactos da pandemia de coronavírus. O que tem funcionado de fato no combate ao Covid-19 é a intervenção do Estado na saúde pública e na garantia da renda mínima durante a quarentena.
Tudo o que é abominado pelo neoliberalismo, que defende apenas a iniciativa privada e o mantra do Estado mínimo.
O que vemos no mundo é a pandemia derrubando com a força de um furacão os dogmas neoliberais, os quais só têm causado crise social e extinção de direitos onde são adotados. No combate à pandemia tem ficado claro que precisamos de mais cooperação entre os governos, de apoio irrestrito às recomendações da OMS e às pesquisas e de rigoroso isolamento social com renda mínima.
Precisamos de mais Estado de Bem-estar Social e não da ditadura do mercado.
Nasce da guerra da pandemia uma mentalidade mais humanista e solidária, que não tolera a desigualdade, o ódio e as guerras, e exige que todos, inclusive os ricos, paguem a conta de forma proporcional à sua renda. Essa mentalidade solidária e progressista também cresce no Brasil, expressando-se no repúdio a um presidente que põe a vida da sociedade em risco, ao negar criminosamente a gravidade da pandemia. Do mesmo modo que em outros países, assistimos aqui a ampliação do debate da volta do papel do Estado e não apenas para reforçar o setor de saúde pública, mas na reconstrução pós-pandemia.
Diretamente ligada à ideia do fortalecimento do papel do Estado está a necessidade de uma reforma tributária justa e progressiva, que adote a taxação das grandes fortunas. Historicamente, esse tema sempre foi tabu e fora do alcance da justiça tributária e social. Aprovada pela Constituinte de 1988, à custa de grande pressão ética e social, a taxação das grandes fortunas jamais foi regulamentada e passou longe de todas as propostas de reforma tributária dos governos Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e agora com Jair Bolsonaro.
Deve ser porque o Brasil é campeão de desigualdade social no mundo. Segundo a revista Forbes, no ano passado, 206 bilionários detinham mais de 1,2 trilhão de reais, quase 20% do PIB. A soma da riqueza de todas as famílias brasileiras é de cerca de 16 trilhões, mas a metade, 8 trilhões, encontra-se nas mãos de apenas 1% de abastados. Toda a política econômica da dupla Bolsonaro-Guedes gira em torno dos interesses desse 1% de super-ricos. A vida do povo e o seu futuro não contam em nada e a visão de “nação” dessa elite endinheirada está reduzida à obtenção do lucro máximo e a uma concentração de renda sem limites.
Podemos constatar isso nas medidas do governo durante a pandemia.
Enquanto o governo propôs pagar inicialmente a esmola de 200 reais como auxílio emergencial, tentou fazer o Banco Central comprar dos outros bancos 1,2 trilhão em títulos podres. A oposição elevou o auxílio emergencial individual para 600 reais e o Senado estabeleceu limites nas ações do BC na compra dos títulos.
O sentimento de que nada mais será como antes da pandemia, que toma corpo internacionalmente e poderá ser realidade em muitos países, também cresce no Brasil. Aqui, onde a mentalidade elitista e escravocrata das classes dominantes sempre bloqueou o debate sobre justiça tributária, a crise da pandemia possibilitou o rompimento dessa resistência para colocar em pauta, na sociedade e no Congresso, várias propostas de taxação das grandes fortunas.
A determinação constitucional de que um novo imposto só tem validade no ano seguinte pode ser contornada pelo estado de calamidade do País, como é o caso do Orçamento de Guerra. Além do mais, no pós-pandemia, o Brasil viverá uma depressão econômica com uma queda do PIB estimada em 5%.
A paralisação da atividade econômica e, consequentemente, da arrecadação de impostos vai tornar necessário, no próximo ano, o aporte de novos recursos que a taxação das grandes fortunas pode suprir plenamente. Nesse sentido, como esforço máximo para gerar novos recursos nesta luta em defesa da vida, merece destaque a proposta de criação do Fundo Nacional de Emergência apresentado pelas entidades fiscais, como Auditores Fiscais pela Democracia (AFD), Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) e o Instituto Justiça Fiscal (IJF).
As propostas de justiça tributária apresentadas e fundamentadas no documento dos auditores fiscais permitiriam ao governo arrecadar cerca de 272 bilhões de reais anuais, dos quais 100 bilhões comporiam o Fundo Nacional de Emergência a ser utilizados por estados, municípios e o Distrito Federal no combate à pandemia. Dentre as propostas tributárias vale esclarecer as mudanças na tabela do Imposto de Renda, com alíquotas de 35% e 40% incidindo sobre rendimentos superiores a 60 salários mínimos (62,7 mil reais) e 80 mínimos (83,6 mil), respectivamente; e a alíquota marginal temporária de 60% sobre rendimentos superiores a 300 salários mínimos mensais (313,5 mil), que representam 0,09% dos contribuintes. O trabalhador que ganha até 4 mil reais por mês estaria isento do imposto, representando um universo de, aproximadamente, 8 milhões de contribuintes, 38% do total de declarantes.
Todos devem dar sua cota de sacrifício no combate à pandemia, contanto que seja proporcional à sua renda e patrimônio. O sentido humanista e solidário dessa proposta de taxação de grandes fortunas expressa-se bem na campanha “Taxar Fortunas para Salvar Vidas”, conduzida pelas Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, com o apoio de todas as centrais sindicais.
Parece algo impossível de se alcançar, mas as profundas mudanças produzidas pelo Covid-19 na realidade econômica e social e na mentalidade de grande parte da sociedade abriram os caminhos para tornar possível a taxação das grandes fortunas no País.
*Deputada federal pelo PT e ex-governadora do Rio de Janeiro.