A geladeira dos parasitas (Vilson Antonio Romero)

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Os mais de 11 milhões de servidores públicos, na União, Estados, Distrito Federal e municípios, têm entregue o melhor de si
Vilson Antonio Romero*

Em julho de 2017, a Lei n° 13.464 trazia o resultado de meses de atuação da Mesa de Negociação entre servidores e governo federal, com uma parcial recuperação de perdas salariais que foi parcelada até janeiro de 2019.

Portanto, o salário dos servidores da União se encontra congelado desde então. O governo e o Congresso ameaçam com muito mais, num evidente estrangulamento daquela parcela da população que ainda permanece em condições equilibradas para manter os níveis de consumo e por consequência minimizar a crise.

O estudo Três Décadas de Evolução do Funcionalismo Público no Brasil (1986-2017), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que, em 32 anos, o funcionalismo público ampliou 123%, com o número vínculos subindo de 5,1 milhões para 11,4 milhões. Mesmo com o avanço, a máquina pública nacional é menor que a média dos países desenvolvidos. Cerca de 12,1% da população ocupada trabalhava no setor público em 2017, menos do que os 18% de média das nações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e até do que países de tradição liberal como os EUA (15,2%) e a Grã-Bretanha (16,4%).

Cabe ressaltar que apenas um em cada dez servidores públicos tem vínculo na União. O aumento em quantitativo de funcionários se verificou com mais expressão nos municípios, onde houve um crescimento de 276%, passando de 1,7 milhão para 6,5 milhões, enquanto aumentou em 50% na esfera estadual e em 28% na esfera federal, incluindo civis e militares. No caso dos municípios, diz o estudo, 40% das ocupações correspondem aos profissionais dos serviços de educação ou saúde como professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde.

Por outro lado, a sociedade, com respaldo do Congresso, foi muito ousada e vanguardista ao defender na Constituição de 1988 que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”. A crise da Covid-19 chegou como um tsunami que exige ação coletiva dos três níveis de governos, da iniciativa privada, das organizações não governamentais (ONGs) e dos cidadãos. São nesses momentos que se sobressaem os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, integridade e equidade. Na crise, volta a discussão sobre o papel do Estado e de seus funcionários, em especial das atividades essenciais, como a da saúde.

Nos últimos tempos, os servidores voltaram a ser alvos. Autoridades federais os estereotipam como “parasitas” e em recentes manifestações exageraram no vernáculo ao dizerem que o funcionário “não vai ficar em casa trancado com geladeira cheia, assistindo à crise enquanto milhões de brasileiros estão perdendo emprego”.

O próprio Banco Mundial atesta que o Brasil gasta o equivalente a cerca de 13,1% do PIB com salários do funcionalismo público, incluindo todas as esferas e poderes, abaixo de cerca de 15 nações que investem muito mais neste setor para ter qualidade no atendimento à sociedade.

Numa crise como a atual, há profissionais de muitas áreas indispensáveis na linha de frente. No serviço público ou na iniciativa privada, o que não faltam são pessoas comprometidas com o futuro do país.

Além de serem tachados de “parasitas”, agora autoridades federais acusam ou “culpam” o funcionalismo de ainda ter recursos para manter a roda da economia girando, adquirindo produtos e abastecendo sua geladeira, enquanto 7 a 8% da população ainda não tem nem o eletrodoméstico.

Com geladeira cheia ou não, estender a mão a quem precisa faz parte da índole do povo e do conjunto dos servidores públicos, principalmente a grande maioria que ganha pouco mais de um salário mínimo, incluindo horas extras e adicional noturno.

Os “parasitas” são também homens e mulheres, chefes de família que já estão com salários congelados desde 2018, na União. Em muitos estados não viram ainda a cor da gratificação natalina de 2018 e 2019.

Inequivocamente, os servidores já estão dando sua cota de sacrifício e, paradoxalmente, estão à frente da luta contra a pandemia. São os profissionais de saúde, os pesquisadores, os servidores de Assistência Social e Segurança Pública que estão na retaguarda. São os auditores da Receita que estão nos portos e aeroportos desembaraçando insumos e equipamentos que vão ajudar na crise sanitária, são os diplomatas tentando repatriar milhares de brasileiros, enfim, diversas áreas em plena atividade. São os servidores da segurança pública que contribuem para manter a normalidade apesar das tensões naturais decorrentes do isolamento social.

As recentes declarações denegridoras da categoria por parte de autoridades federais são falácias, impropérios e destemperanças que nada contribuem para o clima de unidade e harmonia dos brasileiros para o enfrentamento da pandemia.

Os mais de 11 milhões de servidores públicos, na União, Estados, Distrito Federal e municípios, têm entregue o melhor de si, tanto em forma presencial como em “home office” dentro das prerrogativas de cada cargo e função. E uma parcela expressiva cada vez mais tem consciência de seu dever, convalidando a condição de que não são servidores de governo e sim do Estado brasileiro.

E graças à sua dedicação, podem repudiar a pecha malfadada, mentirosa e despropositada de “parasitas” e, com o suor de seu rosto e trabalho, manter a geladeira “relativamente cheia”. Torçamos todos para a pandemia acabar logo, rezando para que os cidadãos deem respostas positivas ao #ficaemcasa.

(*) Vilson Antonio Romero é jornalista e auditor fiscal aposentado.

Fonte: Misto Brasílila