Aloísio Pedreira Machado, já recolhido no seio do Pai Abraão, era o Chefe do Serviço de Fiscalização, na Delegacia da Guanabara, do finado IAPI. Uma figura querida por muitos mas havia gente que o achava exigente demais. Funcionava, e bem. Dentro do esquema da fiscalização, à época, cada Grupo Fiscal tinha um Chefe do Grupo, um assistente, e nove ou dez fiscais ligados ao Grupo.
A função do Chefe não é necessário dizer, mas a figura do assistente, para quem não for daqueles de antigamente, só adivinhando ou perguntando aos daqueles tempos. Além de coadjuvar à Chefia, cada mês em cada ano, faziam uma revisão de empresas já fiscalizadas e faziam junto com o fiscal da rotina uma verificação em conjunto. O objetivo, dizia-se, era uniformizar a Fiscalização pois, agindo isoladamente por muito tempo, os fiscais iam adquirindo condutas próprias, iam esquecendo exigências da rotina e, com o sistema, ficava equalizada a rotina fiscal. Pelo menos era o que se proclamava.
Desta forma, sabia-se que a cada ano o fiscal ficaria um mês trabalhando junto com um Inspetor, como se intitulavam os fiscais assistentes. Após o mês de trabalho junto, o assistente ia fazer sua inspeção de rotina com outro fiscal e apresentava um relatório avaliando o modo de trabalho do inspecionado.
Na maioria das vezes, a inspeção não trazia novidades nem alterações. A coisa fluía fácil, com um perfeito entendimento no Grupo. Mas às vezes um ou outro choque, marcando singularidades do inspetor e do inspecionado. Por exemplo: em certa ocasião, terminada a totalidade das empresas em sua ZF (Zona Fiscal), o fiscal foi convidado, e aceitou, a dar cobertura a um colega que se complicou por questões de saúde e estava com sua tarefa atrasada. Fizera somente o miolo da Zona e aqueles locais mais distantes, de difícil acesso, ficaram esperando melhor oportunidade. E foi esse resto, este fim de safra que tocou para ser fiscalizado pelo fiscal que andou depressa.
Já estava quase um mês em trabalho naquele fim-de-mundo, distante de sua residência, quando foi “premiado” com a companhia do fiscal-assistente. E como uma praga nunca vem só, este inspetor era madrugador em sua rotina, daqueles que esperavam o empregador abrir sua oficina para entrarem juntos. Também, virado o meio-dia, tomava o rumo de casa para tirar sua soneca depois do almoço, hábito que trazia de sua terra de origem, no Norte, na Amazônia.
Era uma diferença gritante com o fiscal inspecionado, que trocava a noite pelo dia, dormindo até tarde, e que varava o fim de tarde terminando sua fiscalização. O relógio biológico dos dois não se harmonizavam de maneira nenhuma.
Na primeira semana o fiscal inspecionado tentou acordar mais cedo, para acompanhar a batida do inspetor, mas a coisa não funcionava de jeito nenhum. Chegava ainda com sono para fiscalizar, até que estourou:
— Afinal, sou eu que lhe inspeciono ou eu é que sou o inspecionado? Se você quiser, amanhã eu estarei na empresa tal, às tantas horas da tarde. Se quiser vá atrás de mim. Ou então, depois de amanhã de madrugada, você vai lá e veja se o que eu fiz está certo ou errado.
Não é necessário dizer que, à tarde, o inspetor lá estava inspecionando o trabalho do fiscal. Mas, se não simpatizavam um com o outro, daí a coisa piorou. A ponto de, durante uma inspeção,ser levantada a dúvida se a gratificação natalina (antecessora do 13°) era ou não passível de contribuição para a Previdência. E que havia ano em que mandado de segurança sustava o desconto e havia ano em que este desconto era cabível. A pergunta fluiu natural: Fulano, neste ano cabe ou não o desconto? A resposta foi decepcionante. Não posso dizer, falou o inspetor, minha função aqui é inspecionar e não de informar. Incontinente, o fiscal inspecionado recolheu seu material na pasta, despediu-se do empresário, dizendo: Depois eu volto, vou perguntar a quem sabe.
Em outra ocasião, saindo da via principal, andaram os dois por quase meia hora até que chegaram bem perto do lugar de onde saíram. Era uma rua que fazia uma grande curva, em Jacarepaguá, e terminava a poucos metros de onde iniciava. Iam cumprir uma NAE já entregue antes da fiscalização em dupla. O inspetor reclamou: Porque nós tivemos de dar esta volta? Se a fábrica era logo aqui, porque andamos toda a extensão da rua? Não era mais fácil entrar pelo fim?
— De fato, respondeu o fiscal, mas acontece que quando eu dei a notificação não sabia disto, dei toda esta volta que acabamos de dar juntos. Isto é para você ver as dificuldades que encontramos quando fiscalizamos. Pasta pesa.
Não é necessário dizer que o relatório foi francamente desfavorável ao inspecionado. Entre outras coisas, esta preciosidade: “se o fiscal começasse a trabalhar de manhã cedo a sua produtividade seria bem melhor”. Erro mesmo, falha na fiscalização, presente ou passada, não havia. A tônica era o fato do fiscal só gostar de trabalhar depois do meio-dia.
Os comentários, sempre há comentários, chegaram aos ouvidos do fiscal, que não esperava coisa diferente. O que ele não esperava foi a conclusão do Aloísio, que após verificar que aquela inspeção deu-se em fiscalização de reforço, medida a produtividade anterior e a de então, concluiu:
— Quem dera que a produtividade dos outros fiscais fosse igual a deste fiscal novo.
O Aloísio era exigente, mas era justo.