Cesar Roxo Machado*
O governo tem vendido para a sociedade a ideia de que a Previdência Social é a grande culpada pelos problemas econômicos do Brasil. Claro, ele tem conseguido isso pelo fato de, ainda, desfrutar de credibilidade em parcela expressiva de uma sociedade ansiosa por mudanças que recoloquem o país nos trilhos e o façam crescer, mas sobretudo por usar essa credibilidade como avalista de um argumento falacioso, que tem a aparência de verdadeiro, mas é falso.
E como isso é feito? É simples: são apresentadas premissas inquestionáveis e, a partir dessas premissas, são apresentadas conclusões que, embora aparentem ser lógicas e verdadeiras para uma sociedade esperançosa de solução, são falsas.
Vejamos como isso ocorre: afirma-se que há um grande déficit primário nas contas da União e que parte expressiva desse déficit é divido às despesas com a Previdência. Afirma-se, ainda, que a expectativa de vida das pessoas tem aumentado, o que complica ainda mais o rombo da Previdência. Pois bem, ressalvado o fato de que o “déficit” do Regime Geral de Previdência Social – RGPS (entenda-se do INSS) esteja bem abaixo do valor por ele atribuído e só tenha ocorrido a partir do ano de 2016 (ou seja: é conjuntural), essas afirmações são realmente inquestionáveis.
Assim, a partir dessas afirmações, são apresentadas as conclusões falsas: a Previdência Social é a grande culpada pelo déficit primário e, consequentemente, se não houver a reforma da previdência, o país quebra; se for feita a reforma da previdência, o país volta a crescer. Aqui estão as falácias. Deliberadamente, é ignorada a existência de quaisquer outras causas para o déficit primário e para a crise econômica que vive o país; são ignoradas causas importantíssimas, tais como as renúncias fiscais (que, segundo estimativas da Receita Federal, atingirão cerca de R$ 306 bilhões em 2019) e, principalmente, o baixo desempenho da nossa economia (essa, por sinal, sempre apontada como efeito e não como causa do déficit).
Então, diante dessa conclusão falaciosa, é afirmado que a única solução (vejam: não existe nenhuma outra) para resolver o problema das contas públicas e fazer o país crescer é aprovação de uma ampla reforma da previdência, transformando-a de regime de repartição simples (previdência social) em regime de capitalização (previdência privada), nos mesmos moldes do sistema implantado no Chile em 1981 que, comprovadamente, mostrou-se desastroso. Embora essa proposta (capitalização) não tenha sido aprovada na Câmara, o governo continua insistindo nela.
As argumentações falaciosas vão além; para que sua conclusão falsa tenha mais aceitação por parte da sociedade, são utilizados outros tipos de falácias, chamadas de “apelos a motivos”, que possuem a intenção de neutralizar o senso crítico do receptor para que sua mensagem falsa seja naturalmente aceita de forma irrefletida. Percebe-se isso, por exemplo no:
– “apelo ao medo”: se a reforma não for feita, o país não cresce, o desemprego aumenta, a taxa de juros subirá drasticamente e o país entrará em recessão. Infelizmente, até agora o governo não apresentou todos os estudos que embasam suas alegações e que poderiam comprová-las. A pergunta que se faz é: como chegar a todas essas conclusões com base na alteração de uma única variável (a Previdência) entre tantas?
– “apelo ao interesse do receptor”: referindo-se aos servidores públicos de uma maneira geral, sempre é dito que tem que acabar com os privilégios. E, por essa razão, tem que ser feita a reforma da previdência. Ocorre que a reforma na previdência do serviço público já foi feita e nenhum servidor que tenha ingressado no serviço público a partir de 1º de janeiro de 2004 irá se aposentar com integralidade ou paridade; o teto é o mesmo do RGPS; se o servidor quiser aumentar o valor de sua aposentadoria deve contribuir para um plano de previdência complementar. Isso não é dito. E mais; o governo refere-se a privilegiados de uma forma genérica, sem apontar efetivamente quem são, dentre os servidores civis e militares, os privilegiados. Se é para acabar com privilégios que impedem o crescimento do país, por que não começar acabando com aqueles desfrutados por grandes grupos econômicos, tais como isenções, anistias, remissões de dívidas e parcelamentos a perder de vista? Por que não atacar o spread bancário, um dos mais altos do mundo?
As pessoas ouvem essas falácias todo dia, a toda hora e acabam aceitando-as como verdadeiras. Afinal, como dizia Joseph Goebbels, “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
Em que pese esses argumentos serem falaciosos, não há como negar que existe um grande déficit primário nas contas da União e que parte expressiva desse déficit é sim divido às despesas com a Previdência. Também não há como negar que existem problemas graves na Previdência que precisam ser corrigidos, inclusive no que diz respeito às idades mínimas para aposentadoria. Tudo isso é verdade. Porém, a Previdência Social, especificamente a do RGPS (INSS), está longe de ser a responsável pelo déficit primário da União. As principais causas são as equivocadas políticas fiscal e econômica que têm sido adotadas, em que o Estado abre mão de bilhões de reais com renúncias fiscais ao mesmo tempo em que estimula a especulação financeira em detrimento do investimento na produção, praticando juros altos, mantendo vigente um sistema tributário caótico e, consequentemente, dificultando o desenvolvimento e o crescimento econômico.
Afinal, ao longo dos anos, várias desonerações, isenções e imunidades tributárias (renúncias fiscais) reduziram consideravelmente o potencial de arrecadação das contribuições previdenciárias. Por sua vez, as renúncias fiscais envolvendo outras contribuições também são um grande problema. Aliado a essa realidade, o Governo Federal, amparado por uma alteração constitucional, desvincula, anualmente, 30% (trinta por cento) das receitas da Seguridade Social para aplicá-las em outras areas diversas das quais elas são destinadas (Saúde, Previdência e a Assistência Social). Em média, nos últimos 10 (dez) anos foram desvinculados cerca de R$ 72 bilhões/ano. Em 2018 foram desvinculados cerca de R$ 120 bilhões. O interessante é que, apesar de todas essas investidas contra o financiamento da Seguridade Social, até 2015 ela manteve-se superavitária numa média de R$ 61 bilhões por ano. Somente a partir de 2016, por razões conjunturais da economia, é que o sistema começou a apresentar déficit. Mas isso só porque, em meados de 2014, o Brasil passou a enfrentar uma das maiores crises econômicas de sua história, que se agravou em 2015 e 2016, fazendo com que o PIB retraísse 7,4% e, por conseguinte, afetasse consideravelmente as receitas tributárias. Embora a economia tenha reagido a partir de 2017, o crescimento econômico ainda está longe de assegurar o financiamento necessário do Estado.
O fato é que não há como resolver o problema das contas públicas sem antes resolver os problemas econômicos do país; a economia tem de crescer, pois havendo crescimento econômico, haverá incremento na arrecadação e, consequentemente, redução do déficit primário. Por outro lado, se não houver crescimento econômico: hoje precariza-se a Previdência Pública; corta-se benefícios; amanhã acaba-se com a Saúde; depois com a Assistência Social, com Educação, com os demais serviços públicos e assim sucessivamente até praticamente acabar com o Estado como conhecemos hoje (transformando-o em Estado mínimo).
A solução, pois, para resolver o problema do déficit primário passa, necessariamente, pela melhora do desempenho da economia e não pela singela e tosca ideia de redução dos gastos com a Previdência. Interessante observar a famosa frase de Henry Louis Mencken: “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
Mas para melhorar o desempenho da economia e, consequentemente, aumentar a arrecadação, é necessário, dar condições para que as empresas invistam no país; gerar condições que atraiam o capital estrangeiro (não o especulativo). Isso, entretanto, só será possível, quando houver segurança jurídica no país. Hoje o cenário é de uma total insegurança em todos os sentidos; não se sabe, por exemplo, nem se o Supremo Tribunal Federal – STF manterá amanhã o mesmo entendimento que tinha na semana passada em relação a um determinado assunto. Tudo é incerto no Brasil, exceto, é claro, a certeza do governo em relação ao cenário econômico, caso não seja feita a reforma da previdência. Quem se anima a investir em um ambiente de incertezas? Imagine alguém que tenha, por exemplo, dez milhões de reais e queira investir esse dinheiro no Brasil. Você acha mesmo que essa pessoa vai resolver investir só porque terá sido feita uma reforma da Previdência?
A verdade é que, para quem defende um Estado mínimo, é coerente e infinitamente mais confortável e fácil resolver o problema do déficit primário atacando a despesa, cortando benefícios sociais considerados simplesmente como despesas desnecessárias, do que atacando o real problema que é a queda de arrecadação.
Mas para atacar esse problema e aumentar a arrecadação, o país precisa voltar a crescer; e bastante. E para que isso ocorra é necessário alterar um dos principais entraves ao crescimento: o atual sistema tributário, extremamente caótico e regressivo, o que o torna um dos sistemas tributários mais concentradores de renda do mundo. É óbvio, pois, que a reforma tributária deveria ter precedido a reforma da previdência, que é necessária, não resta dúvida, mas não essa que está aí e muito menos com as suas justificativas.
Todavia, é importante observar que não pode ser qualquer reforma tributária; não pode ser uma reforma tributária que vise, apenas, uma simplificação, tais como as que tramitam no Congresso Nacional (PEC nº 45/2019 e PEC nº 110/2019). Embora a simplificação seja necessária, uma reforma tributária deve ir além; deve ser ampla visando corrigir todas as distorções do nosso sistema tributário.
Foi pensando nisso que a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – ANFIP e a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital – FENAFISCO juntaram esforços, em um movimento que foi batizado de Reforma Tributária Solidária, para analisar com profundidade os problemas do nosso sistema tributário e apresentar propostas visando corrigir suas distorções.
No livro “A Reforma Tributária Necessária” (obra produzida desse movimento) as duas entidades propõem uma série de mudanças no nosso sistema tributário visando torná-lo mais justo e menos concentrador de renda. Basicamente, as duas entidades propõem uma recomposição da nossa carga tributária (sem aumentá-la e sem reduzi-la), reduzindo a participação da tributação sobre o consumo (extremamente regressiva) e, em contrapartida, aumentando a tributação sobre o patrimônio e a renda, de forma a aproximá-la da carga tributária média dos países da Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico – OCDE. Para dar uma noção do impacto favorável nas receitas públicas que essa reforma tributária pode proporcionar, destaca-se que, com apenas duas propostas entre tantas apresentadas, o potencial de acréscimo na arrecadação é da ordem de R$ 160 bilhões por ano. Para isso, basta acabar com a isenção sobre lucros e dividendos (existente somente no Brasil e na Estônia) e criar mais duas alíquotas na tabela de Importo de Renda das Pessoas Físicas, onerando somente quem ganha acima de 40 (quarenta salários mínimos), cerca de 790 mil contribuintes em um universo de 29 milhões.
Essa entre tantas outras iniciativas propostas, se implantadas, são capazes de alavancar o desenvolvimento, o crescimento econômico do país e pôr um fim no problema do déficit primário.
Essas propostas, contudo, são muito difíceis de serem implantadas, pois mexem com o grande poder econômico. É por essa razão que, apesar de todas as dificuldades que o governo tem enfrentado para aprovar a reforma da previdência, para ele é infinitamente mais fácil combater o déficit primário simplesmente cortando direitos sociais dos trabalhadores em nome do tão almejado ajuste fiscal, do que se empenhar e se desgastar para reformar profundamente todo nosso sistema tributário.
(*) Vice-presidente de Estudos e Assuntos Tributários da ANFIP.